Olar, pessoar!
Esse é o primeiro envio daqui da casa nova no substack. Torço pra que dê tudo certinho, nunca tinha feito essa migração de plataforma antes. Vim para cá porque o movimento de newsletters brasileiras tem feito seu burburinho por aqui e o site permite coisas interessantes a quem escreve. Espero que gostem da nova paisagem. Entra, fica a vontade, pega seu café.
Comecei a ver Pantanal quando a novela já estava bem desenvolvida - o hype inicial tinha passado e os ‘antigos fãs’ já demonstravam desgosto e desapontamentos no desenrolar da história. Essa conversa específica, sobre como é escrever ficção e agradar o grande público dá um texto só pra ela, então hoje escolho fugir dessa treta e puxo outro fiozinho do que me cativou em Pantanar e divido com vocês. Arra!
Minha personagem favorita da trama tem construído um fã clube. Maria Bruaca pega em cheio nos corações magoados e fui entendendo o porquê aos pouquinhos. Não sei como era a recepção de público na primeira fase, como disse, estou acompanhando tem pouco tempo, já peguei o bonde andando da virada da personagem. Ver o seu renascer mexeu muito comigo. Me percebi enebriada, com olhos marejados e coração na mão no dia da cena em cima da chalana, a cantar na hora dourada do dia. Faz mais de uma semana que vi esse capítulo e sigo inebriada pelo sentimento. Acredito que encontrei uma Maria Bruaca dentro de mim - tomo aqui a primeira pessoa, como de costume, porque não ouso dizer um “dentro de nós”. A generalização, que pode produzir mais engajamento, cabe a pouco ou quase nada. O que não impede que você que me lê aí do outro lado também tome essas palavras para si - histórias são feitas pra gente se apropriar delas.
tirando foto da televisão, como faziam nossos ancestrais
A personagem interpretada por Isabel Teixeira mostra como é executar o papel que lhe escreveram, o lugar que lhe cabe, o destino que já estava escrito. Na família tradicional brasileira, tem-se quase como lugar cativo a função mariabruaca: no começo, na mocidade, uma menina-moça cheia de sonhos, sequestrada deles enquanto o bruaquismo se aproxima e faz morada. E Isabel nos mostra isso tudo com maestria, em suas expressões faciais que passeiam do ódio ao medo, da paixão à incerteza, da força ao apagamento de si. Observar Isabel sendo Maria deixa em carne viva de uma da estruturas da história patriarcal brasileira. Maria é a sinhá da casa grande, virou mulher propriedade, terreno colonizado de seu senhor de engenho, roda fundamental para o sistema continuar a deslizar. E bem… em dado momento, se desgarra, se solta da estrutura e fica a flanar - aparentemente sem destino.
E o que quebra essa mulher? O que produz a ruptura de Maria e Bruaca? Infelizmente, a disputa do marido-macho Tenório com outra mulher. O sentido da vida de Maria se desmancha quando vê seu lugar ameaçado e um turbilhão de sentimentos invade seu corpo - a beleza das cenas quando isso aparece! Isabel nos demonstra com destreza um corpo confuso, tomado pela fúria, pela dor, pelo não-lugar. Ver Isabel tomada por Maria me tocou intimamente, no lugar reservado dentro de mim ao mesmo destino: domada, tomada, invadida, colonizada. A mulher que faz e espera, a mulher que cala e consente, a mulher que habita os cantos que lhe restam, que chora no escuro e que observa o grande sol a brilhar. Cada vez que Tenório abre a boca para dizer com muito gosto ‘Maria Bruaca’, sinto a espinha arrepiar. No chamamento, há um endereço: é só aqui que você pode ficar.
Em outra produção global (alô globe, me manda mimos), na sexta feira passada assisti ao Globo Repórter, que trouxe uma pauta muito especial: histórias de pessoas que descobriram ‘o poder dos trabalhos manuais’. Tradicionalmente, as manualidades são classificadas como afazeres femininos, tanto como obrigações do lar quanto como passatempos. Assistindo Sandra Anemberg entrevistando múltiplas histórias e experimentando algumas técnicas foi bonito de ver. O fazer miúdo das manualidades me encanta desde criança e está presente no meu dia-a-dia como meu espaço de ser eu. No programa, era possível ver a transformação das pessoas no encontro do fazer com as mãos, descobrindo uma nova qualidade de vida e a apropriação e sentido para sua trajetória. Me chamou atenção um grupo de rendeiras no interior de São Paulo que nos encontros a fiar em conjunto, entoam cantigas, escutam histórias e assumem para si um novo nome: rendeiras. Me perguntei se eram Marias Bruacas e se a renda, as cantigas e as amigas não salvaram essas narrativas prontas do destino sem cor, sem viço e sem perspectiva. Provavelmente sim. Não sei… Mas fico pensando.
Tem sido de extrema importância o desenrolar da história de Maria - agora não mais Bruaca. As personagens da novela se tocando em sua história, entendendo que o papel bruaca precisa ser desfeito, que precisa de cuidados, que precisa de orientação, acolhimento e sobretudo, precisa de espaço para enfim, ser outra. No capítulo de ontem, Maria e Juma dividiram uma cena muito especial, uma conversa ao pé do fogão, comendo almoço preparado por Maria e falando uma língua em comum, costurada no encontro:
a casa é onde a gente pode chegar e ser. <3
Por fim, sem muitas conclusões, deixo vocês com essa citação que escavei do finado facebook e as memórias que ando a apagar de lá:
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual. (o narrador, Walter Benjamin)
Ainda pensando se trago a sessão Linkeria pra cá. Me ajuda votando?
Um abraço e nos vemos na próxima edição,
paulamaria.