O nome da Rosa: os perigos na escrita
I cover you with questions /Cover you with explanations/Cover you with music/What's on your mind? (Adrianne Lenker)
Esta é uma resenha crítica do livro “Os perigos de estar lúcida” de Rosa Montero (Ed. Todavia, 2023). Foi revisado por mim, pode conter erros.
Rosa Montero neste livro de não-ficção relaciona criatividade e loucura. Defende a causalidade entre trauma e criatividade, que ganha destaque durante todo o livro, como fosse um grande <segredo> por trás do sofrimento psíquico/mental/emocional. Nesse sentido, quem é <estranho, diferente, meio doidinho> torna-se <especial>, pois acessa um segredo escondido. Apenas aqueles e aquelas que, uma vez expostos às mazelas da vida, são presenteados com o dom da expressão artística. O próprio nome do livro é sugestivo à essa interpretação, fio condutor de sua argumentação.
Aliada aos estudos sobre o tema, Montero também traz dados biográficos de escritoras, escritores e artistas, inclusive de si mesma. Inaugura o livro com um fato íntimo de sua infância: o medo de acordar sonâmbula durante a noite e se contaminar ao chupar um pequeno caldeirão de cobre, bibelô de sua mãe. Tinha a ideia fixa de que cobre era venenoso e tal crença a atormentava todas as noites. A historieta infantil a leva a afirmar, na primeira linha: “Sempre soube que alguma coisa dentro da minha cabeça não funcionava direito”. Em termos literários, é uma ótima frase de abertura e rapidamente nos identificamos: nossa, eu também sempre fui meio doidinha. Mas o que se segue é uma série de obviedades como <o que é realmente estranho é ser normal>, uma longa lista de julgamentos morais sobre a vida de notáveis criadores, misturados com estudos duvidosos (não há evidências científicas para <pessoas altamente sensíveis>, por exemplo) e um caso de fã/stalker que a acompanhou por anos - voltarei a falar disso ao final do texto.
Foram muitos os pontos de incômodo ao longo da leitura. O primeiro, que elejo como o mais importante é sua necessidade insistente em caracterizar mulheres de forma negativa, superficial e ou fazendo inferências biográficas. Na terceira página do livro, Clarice Lispector recebe a alcunha de <formidável (e deprimida)>. Virginia Woolf, além de <psicótica>, era uma mulher <destruída>, pois sofrera abusos sexuais durante a infância. Quando analisa os diários de Sylvia Plath, julga sem reservas o comportamento da autora, afimando que ela usava todos ao seu redor e repetidas vezes a chama de <suicida>. Sobre as irmãs Brontë, são brilhantes, mas também são <aquelas três irmãs de físico pouco gracioso>. Emily Dickinson tampouco não escapa de seus comentários: a única foto conhecida da poeta é lida por Montero: <seu semblante severo e triste que, na verdade, parece uma viúva>. Também Emily recebe inferências biográficas como incestos cometidos pelo pai e irmão. Os elogios aparecem, em geral, às obras e não às autoras. O que chama atenção é a maneira como essas adjetivações se tornam a referência à essas mulheres, quando muitas vezes as evidências históricas nos apontam para caminhos mais duvidosos do que certeiros sobre suas histórias pessoais. O que temos de mais rico sobre elas são seus livros e eles deveriam aparecer primeiro, serem os protagonistas dessa relação com a criatividade.
Quando se refere aos escritores e artistas homens, o jogo de cena muda. Repetidamente ganham alcunhas como <o grande>, <o mestre>, <o incrível>. Ao relatar suas biografias e situações de sofrimento emocional e psiquíco, são passíveis de pena e de, inclusive, ausência de julgamento moral de Montero sobre seus atos e comportamentos. O recorte mais absurdo que trago como exemplo é a maneira que sem reservas ignora o feminicídio de Hélène Rytmann, revolucionária e socióloga francesa, esposa de Louis Althusser. Para Montero, Hélène foi morta por ele <num ataque de loucura>. Hélène não é digna de compaixão. Althusser não é um assassino, mas sim um <pobre> coitado, infeliz, atormentado. Em outro caso emblemático é a história de Henri Hoorda, que apesar ao autoextermínio, não é um <suicida> como Plath. Hoorda é alguém que <antes de se matar> escreveu sobre a necessidade de viver inebriado, deslumbrado. Afirma sobre o autor: <voltaremos a falar do incrível Henri Hoorda>. Seria injusto não comentar uma ínfima exceção no rol de homens citados: John Nash. O matemático que sofreu por anos com crises de esquizofrenia paranoide, é cruelmente classificado como vivo morto por causa de sua <loucura extrema>. Escolhas de léxico curiosas que não me deixaram sossegar…
É interessante ser maluca, mas qual é o tanto de maluca que se pode ser? Não fica nada evidente, apesar da autora reiterar sua profundidade de pesquisa no tema, qual a saída para o problema que diz investigar? Tamanha é a confusão que seus argumentos sobre a relação entre loucura e sofrimento. Descontextualizada, a loucura é vista como motor de tristezas, solidão, violência, incompreensão e ao mesmo tempo é essa a matéria prima para a criatividade. A dor psíquica é a mais insuportável, que priva da existência plena e também faz parte da “tríade alucinatória que costuma andar de mãos dadas: criatividade, tendência ao desequilíbrio mental, amores torrefatos” (p.195). É estranho o modo como defende essa relação, pois ao passo em que a loucura é um pressuposto para mentes brilhantes e criativas, também é, por outro lado, uma condição solitária, insuportável. E mais: não deve ser passível de tratamento. Para ela, artistas são pessoas que não amadurecem completamente e uma vida sem sofrimentos intensos pode silenciar pessoas criativas. “Por sorte, não me curaram o suficiente”, diz na página 121. Ainda nessa toada, ao abordar o uso de drogas/álcool por pessoas criativas, não apresenta ressalvas ou críticas. Senti um desconforto absurdo ao ler que “os estadunindenses têm um talento natural para beber até morrer, mas não são os únicos, é claro(…)” (p.113). Tem que sofrer para criar, tem que passar de todos os limites, mas também passar do limite é virar um vivo morto e ainda <deus-nos-livre de curar o sofrimento>. Complicado.
Em nenhum momento são apresentados ou debatidos os contextos das pessoas citadas ou mesmo de suas referências de pesquisa. Vale lembrar que a <loucura> é um conceito que varia historicamente, em especial nos últimos séculos. A psiquiatria é uma ciência recente e campo de disputa social, política, econômica e cultural. Vários fatores devem ser considerados quando estamos falando de <saúde mental>, <doença mental>, <loucura>. Não há uma leitura de gênero, nem mesmo de classe ou raça nas pessoas citadas, além de todos serem ou estadunidenses ou europeus. De qualquer forma, discutir sobre o momento histórico em que viveram seria crucial para a compreensão tanto de suas obras quanto de seus dados biográficos. Me incomoda a quantidade de inferências, quase como um folhetim de fofoca. Entendo que este tom pode evocar no público uma relação mais próxima com essas pessoas, mas também é revoltante o quanto a vida íntima das escritoras é escarafunchada, rotulada, julgada. Me parece uma escolha deliberada. Ficamos com platitudes como <uma é suicida, a outra devastada, uma desesperada e a outra provavelmente bissexual>. Do que tudo isso importa? A quem esse tipo de afirmação serve? Em meio a isso, os homens, mesmo quando assassinos, são apresentados como gênios em sofrimento. Indefensável.
Recheada de essencialismos, afirmações categóricas e argumentos que entram em conflito, o livro é uma grande decepção. Sinto, ao final da leitura, que melhor teria sido apenas contar a história de Bárbara, a mulher que por anos a perseguiu e que fingiu ser Rosa em uma dezena de ocasiões. Me parece que o livro é uma desculpa/justificativa para contar essa história, que por si só se bastaria. A tentativa de relacionar a suposta loucura da suposta “fã” com histórias de loucura de pessoas famosas deu uma salada confusa e desinteressante. Não acho que o livro explore, como promete no blurb da quarta capa, “os laços entre psicologia, criatividade e solidão”. Mulheres interessantíssimas aparecem com pouco destaque já ao final do livro, meio desencaixadas depois da avalanche cansativa de <seja doidinha - sofra muito - seja criativa>. Ursula K. Le Guin, Doris Lessing, Alda Merini, Minna Keal, Janet Frame foram nomes que anotei para estudar e divulgar. Além de claro, revisitar as injustiçadas por Montero com ainda mais admiração.
Sei que este livro teve um impacto muito grande no público brasileiro, em especial nas leitoras. Sei que este texto pode causar desconforto dentre as apaixonadas e parte da minha procrastinação em escrevê-lo é pensar em como lidar com a recepção da crítica. Se você leu, conta como foi a leitura?
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um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Acredito que meu rigor venha do lugar da 'Paula psicóloga', que é inevitável pra mim. Porém também já havia me incomodado com sua escrita em 'a louca da casa', que é mais antigo mas parte de argumentos muito parecidos, sabe? Tô tentando entender o que foi que 'pegou' nas pessoas que amaram o livro, ainda está muito confuso pra mim... Obrigada por compartilhar sua Leitura. 😘
Tu sabes que eu li esse livro e gostei. Acho que pela idade dela e por ela ser mulher, eu fui menos rigorosa nas partes que considerei o que ela escreveu uma total banalização da saúde mental mas, considerando o ano de publicação, é preocupante talvez.
Eu não tinha sido tão crítica e pesquisado mais sobre o livro até ler teu post. Obrigada!