Insanidades virtuais
🎶And it's a wonder men can eat at all / When things are big that should be small / Who can tell what magic spells we'll be doin' for us? (Jamiroquai)
Não diria que sou hater da inteligência artificial; tampouco que sou sua maior entusiasta. Acredito que fico no limbo entre admiração, desprezo e medo. Desde criança observo com curiosidade e empolgação as mudanças tecnológicas – e, sendo millenial, sou testemunha duma série de grandes viradas: somos a última galera que viu um mundo mais analógico. Com certeza a popularização da internet e o uso desta na telefonia móvel foi a maior mudança entre as diversas que testemunhei, sendo inclusive alvo da investigação do meu mestrado (que hoje parece obsoleto para as questões colocadas pelas redes sociais). Recentemente, me percebi curiosa em relação ao tema que trabalhei e resolvi reler o que a paulamaria de dez anos atrás escreveu. Com estranheza e admiração, olhei para esse texto que em parte parece anacrônico e em outra pode conter caminhos relevantes e interessantes de se pensar em 2023. As teorias que embasam o trabalho, que disserta como a tecnologia móvel impacta na subjetividade humana, são, em sua maioria, baseadas em outras perguntas feitas nas décadas de 1990 e 2010, que acertaram em cheio o que estava por vir: tudo mudou radicalmente, somos outras pessoas, a vida virtual é expressão do passado: somos seres híbridos, espalhados por todos os lugares.
Quando escrevi a dissertação, havia parado de escrever online com frequência. Não consegui surfar a onda de quem monetizou com blogs e tentava redescobrir meu caminho de publicização dos textos autorais, coisa que bem aos pouquinhos consegui com o Medium (que caiu em desuso) e que depois ficou solta, sem espaço. Depois de anos de trabalho e pesquisa (e estresse), decidi não seguir a carreira acadêmica e nem a de escritora, jogando os planos de lado sem saber se iria voltar. Contudo, segui usuária assídua da rede mundial de computadores, que agora nem precisava tanto de computadores assim, visto que podemos acessar a web na palma de nossas mãos. Que delícia, pensei. E também que pena, agora reflito.
Estar em rede me proporciona, por exemplo, poder ser lida ao redor do planeta. As tecnologias da inteligência, como diria Pierre Lévy, têm alcançado lugares estranhos que nem a ficção conseguiu nos alertar. O fato de poder estar em contínuo contato com a produção literária e artística de tanta gente incrível apenas na distância de um clique ainda me deixa surpresa, sabe? É por isso que gasto parte do meu tempo lendo newsletters, artigos, pesquisando imagens e referências para construir a particularidade que mora no modo no qual me expresso, seja escrevendo este texto, seja postando uma foto no instagram, seja fazendo uma colagem analógica. O sabor recheado de umami produzido no acesso ao acervo digital que temos em 2023 é um prato de chef, pra repetir e comer de joelhos. É aqui que mora minha implicância com os produtos gerados por inteligência artificial. ‘Cês me perdoem, mas sou fresca nesse quesito.
Flanar pela internet é uma das minhas atividades favoritas, e não, não estou falando do doomscrolling, esse maldito hábito que eu, você e mais da metade da humanidade tá fadado a realizar diariamente. Digo de uma atividade consciente, presente e ativa na pesquisa e organização de assuntos e coisas de meu interesse, essa grande e interminável curadoria das coisas bonitas, que posso salvar, revisitar e compartilhar, claro. Tenho especial apego a plataformas fora de moda, como flickr e tumblr, onde gasto horas e horas me deleitando com o que escolhi consumir. O apreço pelo que é belo me pega, não consigo abrir mão disso, percebo como é essencial para a minha felicidade pessoal e também para o meu ofício de escriba. Tentei, sem muito sucesso, interagir com as mais famosas IA que geram tanto textos quanto imagens e tudo que senti foi uma enorme frustração: o belo que me cativa e me surpreende não estava lá.
Belo belo belo
Tenho tudo quanto quero,
Tenho o fogo de constelações extintas há milênios,
E o risco brevíssimo — que foi? Passou — de tantas estrelas cadentes.A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.O dia vem, e dia a dentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.Não quero o êxtase nem os tormentos,
Não quero o que a terra só dá com trabalho.As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.— Quero a delicia de poder sentir as coisas mais simples.
Manuel Bandeira, Lira dos cinquent’anos
Se você é uma pessoa observadora, já reparou como monto composições entre os textos e as imagens. Em cada texto, a pesquisa imagética é parte final de seu arremate; sem as imagens, sinto que a comunicação das cartas fica incompleta. De plataforma em plataforma, de aplicativo em aplicativo, ao longo de vinte anos me exibindo na internet pude construir não apenas o apuro na escrita, mas também uma semiótica própria, levando para quem me lê uma imagem de quem sou – uma espécie de persona. Isso não é uma bobagem, não é à toa, não é randômico. Tenho uma intenção objetiva e ela se dá na experimentação ativa dessas colagens (eu e meus pedaços). Admiro, contudo, quem consegue estabelecer uma relação mais próxima com as inteligências artificiais agora que elas estão se popularizando. Por aqui, me vejo naquele cantinho de pessoas que já falam "porque no meu tempo não era assim" e se vangloria dos próprios gostos - por costume, por conforto, por gosto mesmo. Sei que vivo de maneira bastante analógica; essa newsletter de hoje nasceu num rascunho escrito à mão, num caderno pautado que carrego na mochila. Talvez parte de mim queira deixar a inteligência artificial como uma promessa de futuro imaginado pela cultura pop dos anos 1990 – e que nunca aconteceu. Eu já falei que sou nostálgica, né? Deve ser por isso.
Drops:
O vestibular da USP está com inscrições abertas
Um artista de IA que faz coisas bonitas: Cartier Bressão
Outro artista de IA, agora em vídeo e música: André Graciotti
Uma playlist de vídeos futuristas y2k (aceito sugestões para incrementar)
Estética de computadores antigos foi moda uns 2 anos atrás
Se gosta do que escrevo:
apoie continuamente através dessa plataforma;
assine por aqui e receba uma edição extra por mês (a seção Caderno de Perguntas);
espalhe a palavra da news para sua rede
um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
somos todas híbridas e fragmentadas.
bando de doida! amo.
obrigada por linkar meu texto tb ❤️
Muito bom! Ótimas reflexões.