A mala da maluca
🏠Desafiei todos os ventos / Até que uma Lição / Me deu irada a Natureza / E furou meu Balão (Emily Dickinson)
fábula
desistir é coragem difícil
somos programados
para tentar
deslizando aos barrancos
a pele das pernas
esfolada
os pulsos marcados
pelos rosários
(Um buraco com meu nome – Jarid Arraes)
No mês de março, as cartas serão temáticas. Dia oito é dia internacional da mulher e convoquei colegas de newsletter para escrevermos sobre o tema, livremente, cada pessoa à sua maneira. Resgatei um texto para abrir essa série, uma prosa poética, se posso dizer. É mais um pedaço que pretendo juntar, mexer, remexer e dar uma forma de livro. Um dia.
Estar exausta é sintoma de final de ano e tem sido sempre pior há cinco anos. O cansaço me dá vontade de quebrar tudo, de gritar com a família, de fugir de casa, de cortar o cabelo e largar o emprego.
Mas aí eu respiro, muitas vezes, impaciente e insistente. Depois de uma série de repetições, tudo se controla novamente. E acho que estou exausta de ser uma louca controlada.
Por vezes desejo: e se tudo acabar, aqui, agora? E se de repente a vida me escapasse sem esforço, sem sobreaviso, na maciota: um escorregão no banho, um atropelamento na calçada, um raio na tempestade do meio da tarde. Ao invés disso, a vida continua a me presentear com a dádiva do viver, o reabrir dos olhos todo santo dia – o que me ocupa, não só de mim, mas também de tudo que me acontece e que nunca pude contar a ninguém.
Não é sobre lamento ou confusão, é sobre o que foi e talvez só eu saiba. Outras vezes também desejo apagar a memória como fiz com todas as fotos que encontrei. Fingir que não conheço minha própria história, até ficar desmemoriada e poder, enfim, me perder de mim. Desculpe, passado. Ir embora eu bem que fui, esvaziar a sala não foi muito difícil, sou rápida com caixas caixinhas caixotes. ZIP. Fecho com fita crepe, sinalizo o conteúdo com post-it e próximo!
O duro mesmo são os restos, da mudança e de mim. O papel de bala atrás do sofá, as folhas secas da trepadeira no caminhão da mudança, os cabelos e pelos ao chão, eu eu eu, em todo cantinho encontro mais um pedaço de mim. Tudo se desfez no pórtico do tempo, diria Hilda, e eu nunca deixo de esquecer, como as outras coisas que não couberam na caixa e que eu queria poder jogar gasolina, riscar o fósforo e fechar a porta.
Estou exausta de não digerir tudo isso e ao mesmo tempo continuar viva, a sentir uma fome infinita, que me dá gastrite e bafo, que nem chicletes de canela ou sal de fruta resolvem. Desisto de tratar, de esquecer e de lembrar.
Levanto, tiro a roupa, entro no banho e esfrego, com afinco e lágrimas, tudo o que insiste em restar. Por hoje, ainda serei louca, ainda controlada e, também, limpa.
"Monstras somos nós, extraordinárias, visto que a monstruosidade é corpo diferente em movimento, feito de solidão. A monstra é linda e canta uma canção. A letra é dela dessa vez." (Flor de Gume, Monique Malcher)
Indicações literárias:
O papel de parede amarelo - Charlotte Perkins
Uma mulher é isolada no quarto de sua própria casa e dali escreve.
É sempre hora da nossa morte amém - Mariana Salomão Carreira
Uma mulher perde sua memória e busca nos destroços dela, uma pista.
Uma encarnação encarnada de mim - Bruna Beber
Uma mulher que inventou como narrar sua experiência como humana.
Insubmissas lágrimas de mulheres - Conceição Evaristo
Mulheres em seu cotidiano, sem pedir licença.
Gosta do que eu escrevo? Considere se tornar assinante pago da news! Por oito reais mensais, você recebe uma vez por mês a edição especial (caderno de perguntas) e no plano anual tem desconto.
um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Amiga concordo com a Gabi e acho que esse texto contribuiu com minha pensata. Ando cansado de viver, não consigo ser superficial, acabo sendo o incômodo no movimento social. Às vezes me arrependo de ter voltado do coma, parece que minha presença na vida é cheia de complicações. Eu não vou fazer mais nada, mas continua com o mesmo sentimento cansaço.
Que texto visceral. Belissimo.