te escrevo cartas

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A mala da maluca

paulamaria.substack.com

A mala da maluca

🏠Desafiei todos os ventos / Até que uma Lição / Me deu irada a Natureza / E furou meu Balão (Emily Dickinson)

Paula Maria
Mar 3, 2023
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A mala da maluca

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fábula
desistir é coragem difícil
somos programados 
para tentar
deslizando aos barrancos
a pele das pernas
esfolada
os pulsos marcados
pelos rosários
(Um buraco com meu nome – Jarid Arraes)

No mês de março, as cartas serão temáticas. Dia oito é dia internacional da mulher e convoquei colegas de newsletter para escrevermos sobre o tema, livremente, cada pessoa à sua maneira. Resgatei um texto para abrir essa série, uma prosa poética, se posso dizer. É mais um pedaço que pretendo juntar, mexer, remexer e dar uma forma de livro. Um dia.


Estar exausta é sintoma de final de ano e tem sido sempre pior há cinco anos. O cansaço me dá vontade de quebrar tudo, de gritar com a família, de fugir de casa, de cortar o cabelo e largar o emprego.

Mas aí eu respiro, muitas vezes, impaciente e insistente. Depois de uma série de repetições, tudo se controla novamente. E acho que estou exausta de ser uma louca controlada.

Por vezes desejo: e se tudo acabar, aqui, agora? E se de repente a vida me escapasse sem esforço, sem sobreaviso, na maciota: um escorregão no banho, um atropelamento na calçada, um raio na tempestade do meio da tarde. Ao invés disso, a vida continua a me presentear com a dádiva do viver, o reabrir dos olhos todo santo dia – o que me ocupa, não só de mim, mas também de tudo que me acontece e que nunca pude contar a ninguém.

Não é sobre lamento ou confusão, é sobre o que foi e talvez só eu saiba. Outras vezes também desejo apagar a memória como fiz com todas as fotos que encontrei. Fingir que não conheço minha própria história, até ficar desmemoriada e poder, enfim, me perder de mim. Desculpe, passado. Ir embora eu bem que fui, esvaziar a sala não foi muito difícil, sou rápida com caixas caixinhas caixotes. ZIP. Fecho com fita crepe, sinalizo o conteúdo com post-it e próximo!

O duro mesmo são os restos, da mudança e de mim. O papel de bala atrás do sofá, as folhas secas da trepadeira no caminhão da mudança, os cabelos e pelos ao chão, eu eu eu, em todo cantinho encontro mais um pedaço de mim. Tudo se desfez no pórtico do tempo, diria Hilda, e eu nunca deixo de esquecer, como as outras coisas que não couberam na caixa e que eu queria poder jogar gasolina, riscar o fósforo e fechar a porta.

evangelinegallagher:
“ Nobody’s Home
Evangeline Gallagher 2019
Buy prints
”
Nobody’s Home, arte de Evangeline Gallagher, 2019

Estou exausta de não digerir tudo isso e ao mesmo tempo continuar viva, a sentir uma fome infinita, que me dá gastrite e bafo, que nem chicletes de canela ou sal de fruta resolvem. Desisto de tratar, de esquecer e de lembrar.

Levanto, tiro a roupa, entro no banho e esfrego, com afinco e lágrimas, tudo o que insiste em restar. Por hoje, ainda serei louca, ainda controlada e, também, limpa.

"Monstras somos nós, extraordinárias, visto que a monstruosidade é corpo diferente em movimento, feito de solidão. A monstra é linda e canta uma canção. A letra é dela dessa vez." (Flor de Gume, Monique Malcher) 

Indicações literárias:

  1. O papel de parede amarelo - Charlotte Perkins

    Uma mulher é isolada no quarto de sua própria casa e dali escreve.

  2. É sempre hora da nossa morte amém - Mariana Salomão Carreira

    Uma mulher perde sua memória e busca nos destroços dela, uma pista.

  3. Uma encarnação encarnada de mim - Bruna Beber

    Uma mulher que inventou como narrar sua experiência como humana.

  4. Insubmissas lágrimas de mulheres - Conceição Evaristo

    Mulheres em seu cotidiano, sem pedir licença.


Não quero realidade! Quero mágica! - Vivian Leigh como Blanche Dubois em Um bonde chamado desejo

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um abraço e até a próxima edição,

paulamaria.

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4 Comments
Amiel Vieira
Writes Mente Social
Mar 6Liked by Paula Maria

Amiga concordo com a Gabi e acho que esse texto contribuiu com minha pensata. Ando cansado de viver, não consigo ser superficial, acabo sendo o incômodo no movimento social. Às vezes me arrependo de ter voltado do coma, parece que minha presença na vida é cheia de complicações. Eu não vou fazer mais nada, mas continua com o mesmo sentimento cansaço.

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1 reply by Paula Maria
Gabi Albuquerque
Writes Tempo para você
Mar 3Liked by Paula Maria

Que texto visceral. Belissimo.

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1 reply by Paula Maria
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