Lascar a pedra por prazer
📖(...) Nada deixo para trás, e se nada alcançar / Herdo o que é meu, voltarei para buscar! >> (St. Vincent Millay, Poemas solilóquios e sonetos)
O que faz uma pessoa se considerar ou ser considerada criativa? Pergunta capciosa, com gostinho de pegadinha. Numa frase atribuída a Albert Einstein, diz que a criatividade é a inteligência se divertindo. Criando um segundo problema, podemos pensar o que é afinal a inteligência… Ou podemos assumir que criatividade e inteligência são capacidades humanas inatas, passíveis de treino e desenvolvimento, bastando uma pitada do ingrediente mais importante para uma pessoa criativa e inteligente: a teimosia.
No dicionário, criatividade é substantivo feminino: 1. qualidade ou característica de quem ou do que é criativo; 2. inventividade, inteligência e talento, natos ou adquiridos, para criar, inventar, inovar, quer no campo artístico, quer no científico, esportivo etc. No primeiro significado, sua adjetivação. No segundo, uma definição parecida com a einsteiniana, equiparando seu significado com inventividade, inteligência e talento, que, de acordo com o mesmo dicionário são assim definidos:
Inventividade: (subst. fem.) 1. qualidade, faculdade, atributo do que é inventivo; inventiva; 2. poder criador, imaginação criativa.
Inteligência: (subst. fem.) 1. faculdade de conhecer, compreender e aprender; 2. capacidade de compreender e resolver novos problemas e conflitos e de adaptar-se a novas situações; 3. conjunto de funções psíquicas e psicofisiológicas que contribuem para o conhecimento, para a compreensão da natureza das coisas e do significado dos fatos; 4. modo de interpretar, de julgar; interpretação, juízo; 5. (fig) indivíduo de grande inteligência, sumidade; 6. harmonia, entendimento recíproco; 7. acordo ou combinação secretos; maquinação, conluio.
Talento: (subst. masc.) 1. aptidão, capacidade inata ou adquirida. 2. numismática: moeda antiga da Grécia e de Roma; 3. metrologia: antiga medida de peso greco-romana; 4. intelecto notável, que se afirma por méritos excepcionais. etimologia: do latim talentum, certo peso de matéria preciosa.
(curioso como a criatividade é substantivo feminino e o talento masculino. dá para pensar outro texto a partir disso, hein?)
No livro ‘O Caminho do Artista’, Julia Cameron propõe uma prática religiosa e devota da criatividade. Tentei acompanhar a leitura participando de um grupo online, com encontros semanais de compartilhamento, mas o tom religioso me incomodou, e, por fim, abandonei. Não funcionou para mim, que preferi ouvir o podcast sobre o livro comentado pela Nina Cast. Em psicologia, ao estudar processos cognitivos, as grandes ‘áreas’ de funcionamento da nossa mente são divididas entre percepção, linguagem, atenção, memória e pensamento. A criatividade é um fator sócio-cultural que ‘conversa’ com todas essas áreas e é acessada através de comportamentos, como a resolução de problemas, as expressões artísticas e também as expressões afetivo-sentimentais.
Em Grapefruit, livro lançado em 1964 por Yoko Ono, com instruções criativas e desenhos da artista, encontramos uma reunião ousada de exercícios criativos. Segundo este artigo, ‘Yoko propõe uma desaceleração pacífica do tempo. E não seria esta uma forma de resistência às incompreensões e tumultos do mundo contemporâneo?’. Resistir às exigências produtivas e imperativas do contemporâneo, ser teimosa e dizer um NÃO sonoro quando eles dizem que eu deveria isso ou aquilo. Na contramão, escolho gastar meu tempo com alguma bobagem, alguma coisa inútil, algum absurdo. Talvez essa seja minha definição preferida de criatividade.
Criar pode ser duro, perturbador. É atividade que serve de escape para ideias obsessivas, para sentimentos que precisam de maturação, de entendimento.
numa antiga edição da queria ser grande, mas desistiUma teimosia que pressupõe gastar tempo com algo que não necessariamente terá troco, seja ele dinheiro, reconhecimento, fama, aprendizados, elogios ou bem-estar. Uma proposta de criatividade que não deve estar apenas à serviço da resolução de problemas, sendo inclusive uma força motriz exatamente contrária, causadora de questionamentos e incertezas. Gosto da ideia de ter cada vez menos verdades certeiras e eternas, de ser mais sensível às sutis mudanças e rachaduras que se apresentem no meu caminho. Gastar o tempo de maneira despretensiosa, desgarrada, desimportantemente. O uso de uma moeda própria, com o peso de uma matéria valiosa, meu talentum.
Nisso, fico me perguntando se não há algo de revolucionário em amar as coisas inúteis. Em dedicar-se ao que não tem qualquer utilidade, ao que demanda um tempo mais longo, mais cuidadoso. A dedicação ao mergulho — quando ninguém parece ter tempo para nada além de molhar os pés.
nessa edição bonitaSe a criatividade não for um luxo, algo para poucos, como talento ou dom, ela pode ser então uma via de acesso ao sensível, que é possível mesmo com as oscilações inevitáveis e desagradáveis da vida. Com a criatividade, seguimos em conexão e interesse por nós mesmos e pelos outros. Acessar o sensível em doses diárias, seja relatando sua jornada na escrita de um diário ou observando com atenção uma cena pela janela do ônibus, em meio ao caos do trânsito pós-trabalho. Ainda que a criatividade seja uma ‘competência desejável’ para aplicar em vagas de ou um termo repetidamente usado em discursos motivacionais no linkedin, acredito que a sua força está em explodir esses conceitos… E produzir a curva. Bambu que não enverga, quebra. Com teimosia, podemos investigar nossos limites e prosseguir – que é o que a vida pede de nós.
Dicas:
Ouça o Ethan Hawke falando sobre criatividade
Exposição Nise da Silveira - a revolução pelo afeto
Minha (outra) newsletter com exercícios de criatividade:
Escrita criativa: o prazer da linguagem – Renata Di Nizzo
100 exercícios de escrita criativa – Rodolfo Minari
Palavra por Palavra – Anne Lamott
O despertar criativo - Amanda Longoni e Fernanda Longini
Arte importa! - Neil Gaiman
A vida não é útil - Ailton Krenak
Leia também:
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um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Que texto lindo, tenho pensado tanto nisso tudo em meio ao furação do processo criativo do meu primeiro romance. Escrever pode ser (é) perturbador e belo, muito belo, pois depois de ultrapassada a grande onda, tem um mar lindo para ser visto a frente, aí vem outra onda, de novo e de novo....
Sabe quando a gente recebe um carinho no que arde? Então, essa edição foi assim. Com certeza, voltarei à releitura. Já salvei aqui. <3