Uma observação antes de começar: este texto, como a maioria da newsletter, é de cunho personalíssimo. É uma espécie de crônica ficcionalizada da minha vida, com pitadas de fatos e pitacos pessoais. Não pretendo abarcar a experiência humana, não consigo nem mesmo dar conta da minha própria. Divido meus devaneios e torço para que seja minimamente agradável de ler. Sei que o Natal é uma data complexa, que muitas pessoas não comemoram, outras que detestam e outras ainda que são indiferentes. Cresci numa família católica e o costume cristão é forte ainda hoje para meus pais e outros parentes. E é desse cenário que eu lhes escrevo, é por isso que faço questão de escrever em primeira pessoa.
Este é o quarto e último texto da série “hoje é um novo dia, de um novo tempo blá blá blá”. Dezembro acaba domingo e o ano também, ufa. Fica minha despedida meio esquisita (nada que vocês não estejam acostumados…).
Passou o Natal, finalmente. Dezembro ainda está aí, nos cutucando com vara curta, ora como uma cosquinha engraçada, ora como um primo irritante que você não gostaria de ver nem uma vez ao ano. Inevitável passar por mais um mês doze, lotado de superstições, retrospectivas, decorações incompatíveis com o clima tropical e lembranças, uma penca de lembranças. Boas ou ruins, elas aparecem como pacote surpresa, como encomenda que você não pediu, mas o endereço e o destinatário não enganam: é pra você sim.
Essas lembranças entregues pela Amazon da memória me fizeram gastar um tempo, na noite de ontem, pensando sobre tudo aquilo que decidimos guardar para depois. Não sei exatamente porque grudei nessa frase – guardar para depois. Eu havia acabado de assistir um filme que não gostei muito, o Flores Raras do Bruno Barreto, que conta a história da arquiteta Lota de Macedo Soares e da poeta Elizabeth Bishop. Estava em busca de um filme sáfico para fechar a noite e alguma coisa não bateu bem, como uma indigestão. A figura de Lota, elogiosamente interpretada por Glória Pires, me passou uma dureza, um tipo de egoísmo muito específico, engoli seco em suas cenas. Me deslumbrei com o talento de seus trabalhos arquitetônicos, mas ficou um gosto amargo na garganta. Fechei o tablet, tentei dormir. Minha cabeça rodava, alguma coisa no filme ou no dia, quem sabe, ficou guardada para depois.
Tenho uma mania especial – que também pode ser vista como um problema, ou uma esquisitice: me apego aos restos, aos pedaços que sobram, aquilo que pode servir mais tarde, um pouco depois. Essa mania é tratada com respeito por mim mesma porque aprendi que sou assim, eu gosto dos restos e não há nada de errado com isso. Claro, também tento compreender, em terapia e em autoanálise, de onde raios foi que construí esse hábito, cacoete, vício. Seja qual for a definição, da origem eu pouco sei. Se me sirvo da comida na geladeira no almoço, é batata: não importa a quantidade, vou fazer sobrar para depois. Se ganho cem reais, ainda que um real apenas sobre, terei pra depois. Se a gente briga e para de se falar, provavelmente daqui uns anos, terá uma boa lembrança que guardei para um reencontro. Se um objeto se quebra, eu conserto ou guardo, para que seja útil, um dia. Coleciono e organizo as coisas do depois: vidro de azeitona lavados e secos, recheados agora de botões sobressalentes, desses que vêm costurados no avesso de roupas. Uma caixa de papelão, que abrigou um presente de Natal, agora guarda canetas, lápis, borracha, canetinhas. Ecobags de eventos de medicina veterinária se enchem de capas de óculos, necessaires, bolsinhas e bijuterias para doação. Os restos que me rodeiam sempre terão minha atenção e cuidado.
Semana passada, contei para vocês um pouco da minha relação com objetos na casa dos meus pais. Ainda estou por aqui e escrevo na mesma cadeira, cercada pelos mesmos objetos da última carta. Devo confessar que depois de enviar o texto para revisão da Luiza, tive um ímpeto incontrolável de arrumar alguma coisa e, respeitando meu apreço pelos restos, não resisti. Contudo, decidi ser comedida, organizei apenas umas três ecobags que achei no guarda-roupas, que continham uma quantidade estranha de porta-óculos; blocos de anotação da faculdade da minha irmã; brincos sem par ou tarrachas; grampos de cabelo enferrujados e brindes do Mc Donald's. Destinei lixo reciclável, separei doações, indiquei para minha irmã documentos que ela precisava analisar. Não foi suficiente, eu ainda queria mais: é uma fome. Me permiti então, uma sobremesa: peguei um porta-trecos que fica na sala e também tirei o que era lixo, devolvi coisas para seus lugares originais, e, ao final, acho que sosseguei.
Arrumar coisas é um processo cognitivo pra mim. Enquanto arrumo, separo, organizo, dobro, rasgo, leio, risco, guardo eu também trabalho do lado de dentro, nos pensamentos e sentimentos, a cabeça e o coração alinhados, em ritmo. Poderia dizer que parece uma dança, mas não sou muito boa com coreografias. Quase consigo desenhar o processo em desenvolvimento: estou ali, espalhada nas coisas, intensamente ligada, ainda que temporariamente, àqueles objetos. Quando termino uma arrumação, algo em mim se transforma. Arrumo porque gosto de guardar, arrumo porque gostar de restos não quer dizer gostar de qualquer coisa, nem aceitar migalhas de qualquer jeito. Envelheço mais um ano, sobrevivo a mais um dezembro, acumulado na pilha sentimental dos calendários. Espero puxar a folhinha do dia 31 e até lá devo encarar mais umas gavetas e estantes da casa de meus pais. Entre restos, objetos e pedaços, sei que cheguei aqui porque também me guardei para depois, esse lugar do futuro que não existia, mas que eu acreditei na possibilidade.
Que 2024 nos venha gentil e generoso.
Obrigada pela companhia mais um ano, chego aqui e não chego sozinha.
Um abraço e nos vemos no ano que vem,
Paulamaria.
Por aqui também me apego a esses restos que podem ser reaproveitados, mas quero aprender a discernir melhor o que realmente tem conserto daquilo que só faz volume na gaveta e na nossa cabeça. Um feliz 2024 pra nós e que a gente consiga liberar espaço para novos pedaços.
É curioso, eu tenho uma predisposição a descartar tudo. Bem às vezes me vejo arrependida de ter jogado fora aquele recibo, aquela roupa, mas é raro. Cresci numa casa com muito acúmulo - as pessoas se apegavam ao papel de pão, ao saquinho que veio a batata da feira. Acho que resisto aos restos por isso. Me bagunça todinha. Esses dias, passei por um processo parecido, porque me mudei de casa. Daí vem aquela arrumação toda, mas bateu a sensação de muito tudo, de precisar abrir espaço pra uma nova vida. De certa forma, eu vejo esses descartes, doação, reciclagem como uma troca de pele. Mas uma coisa é inegável: essas gavetas e armários guardam muito da gente, pois estamos em cada pequeno pedaço. Celebremos esses retalhos e que venha 2024!