Gentileza é como um travesseiro
🎶Ainda é cedo pra/Duvidar e dormir/Ainda é cedo pra/Duvidar, sonhar/Os dias da juventude (Terno Rei)
Durante onze anos estudei em colégio católico, o que, sem dúvidas, moldou parte do meu caráter – seja lá qual for a sua definição para isso. Nesses onze anos, o colégio era minha vida inteirinha, meu grande parquinho a céu aberto, meu lugar para entender como o mundo funcionava, quem eram as pessoas que circulavam por aí que não fossem a minha família dó-ré-mi-fá-vó-tia avó-donamariquinha (qualquer dia comento sobre árvore genealógica e como vivi intensamente esses laços familiares). Estar naquele colégio me ensinou uma infinidade de coisas, desde o amor pela literatura até a importância fundamental em exercer a gentileza – e é sobre isso que pretendo escrever hoje.
No caminho para a faculdade tenho muitos insights de escrita que costumo rascunhar no aplicativo do keep ou nas conversas comigo mesma. Tem dias que escrevo poemas, tem dias que apenas frases soltas que não se desenvolvem e tem dias que produzo excertos de texto, pensamentos desdobrados sem muito filtro ou auto-julgamento: registro para não esquecer que pensei sobre aquilo. Ao retomar essas anotações, consigo perceber o quanto meia dúzia de temas são recorrentes nos meus pensamentos, percebo minhas obsessões sentimentais, minhas nóias de estimação, meus temas de terapia. Se Louise Borgeuois mostrava em suas aranhas o apego por sua mãe, se Hilma Af Klint pintava mil formas de demonstrar a importância do espiritual e se Yayoi Kusama enfrentaria o mundo com “apenas uma bolinha”, posso, humildemente, escrever minhas bobagens e esmiuçar meus pedaços repetitivos em palavras.
Penso que perceber um ataque de angústia e resolvê-lo é a forma mais elevada da existência (…) é uma criação últil. Útil no sentido único de que faço um progresso (…) a palavra útil cheira a moral, por útil quero dizer real em oposição à “criação estética” que é uma in-útil criação. Quero criar pontes, o que quero é estar próximo dos outros. (Louise Borgeouis, tradução livre de Isabel Carvalho)
Uma de minhas obsessões é a gentileza, essa que carrego como valor fundamental desde a escola e que já teve algumas caras diferentes ao longo da vida. Gentileza que já se confundiu com caridade, com falta de limites, com condescendência, com anulação de si, com humilhação, com obrigação. Um corpo inexperiente se adapta ao que precisa para sobreviver e seria injusto cobrar da minha eu antiga condições espertas para sair de problemas e tretas que eu nem conseguia sequer enxergar – aí mora o passo dois da obsessão, levá-la para passear na sala da terapia. O que ficou hoje, consigo dizer, é uma vontade de estar junto das pessoas e do mundo sem me machucar e, ainda assim, continuar sendo solícita, disponível e participante, dentro dos limites que eu mesma estabelecer. Por vezes, sei que serei tachada de egoísta, individualista, arrogante – quando você para de dar, ninguém está realmente preparado para parar de receber. Lidar com o bebê chorão que mora dentro de cada um não é fácil, constantemente me pego no colo e me nino, cantando minhas músicas de dormir, até acalmar o pavor do abandono. E então, fica tudo bem.
Quero ser lembrada por gentileza e generosidade. Demorei a entender meus atos amorosos, pavorosamente descritos naquele livro do pastor sobre os tipos de amor, como atos de serviço. Eu demonstro amor com gestos, desde o dia um. Se quero ser sua amiga, vou lhe oferecer algo, um favor, um livro, uma companhia ao médico, uma peça de roupa que me sobra, ou, como hoje, uma garrafa de café pra dividir no intervalo das aulas. Escrevo essa nota dentro do ônibus. Me equilibrando entre três bolsas, duas delas atos de serviço. Numa, meus pertences acadêmicos: cadernos, estojo, necessaire, máscaras, carregador, livro da vez. Noutra, livros que salvei de irem pro lixo, da vizinha desconhecida do prédio, deixarei na estante de doações no prédio de filosofia e ciências sociais. E a bolsa da garrafa térmica, uma ideia que tive ontem, batendo papo com duas novas amigas de faculdade, que me acompanham na cantina pro cafezinho do intervalo. Levo o café não pela economia pessoal com a cantina que me leva nove reais diários no cappuccino, mas porque nesse compartilhar eu ofereço também a mim mesma. Me ame, eu digo, servindo o café passado às seis da manhã no intervalo às dez. Me ame, eu preciso ser amada porque quero ser eterna, com gentileza e generosidade. Mas eu sei que não funciona assim.
Confesso que o retornar ao banco da sala de aula não foi simples. Existe evidentemente um abismo geracional entre eu e a maioria dos colegas de turma e no início foi difícil, algumas rudezas e etarismos gratuitos me deixaram ressabiada. Talvez em outro momento da vida eu teria sido rude de volta, respondido com meu bebê interior que faz pirraça e sabe falar mais alto do que todo mundo – pra pedir silêncio eu berro, pra fazer barulho eu mesma faço, me ensinou Rita. Não responder nesse automático e acessar minha camada de gentileza, comigo e com o novo ambiente, me fez dar a chance para outros encontros, e agora, três meses depois do início das aulas, o que mais me encanta é a delicadeza da juventude dos anos 2020. Essa faceta incrível das pessoas que nasceram quando eu comecei a primeira faculdade me espanta, porque a minha geração era dura, duríssima. Não sei se por ter crescido num lugar onde se desconfia de tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo ou se porque os anos 1990 era ser desprovido de esperança, limites e informações acessíveis. Não sei mesmo.
Na beira de aniversariar, sinto um gosto doce de fazer novas amizades, de ser acolhida com carinho e atenção, de regular meu comportamento sem julgamento ou previsões. Levar o café, ler um trabalho, indicar uma música, fazer picnic, dividir um lanche, fazer ligação de vídeo pré-prova, aprender um novo vocabulário, ir para o bandejão com companhia, comemorar a nota alheia, fazer companhia no ponto de ônibus… A lista das gentilezas diárias é grande (ufa!). Que alegria é revisitar minha juventude com paciência e delicadeza, podendo construir novas histórias a partir da dureza de vinte anos atrás. Sim, é verdade: água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Ditados populares são pequenas obsessões antigas levadas pelo tempo afora. Ainda bem.
Drops:
A exposição Helena Almeida no IMS está imperdível;
O Profeta Gentileza, pra quem não conhece;
Documentário sobre a Yayoi Kusama disponível no Sesc em casa até dia 28/06, gratuito;
Aprendi sobre essas artistas que citei no incrível curso Mulheres Artistas na história da arte com Isabel Carvalho, turma nova em julho;
Passei (!) na chamada da editora Urutau e em breve teremos livro novo!
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Como mencionei, meu aniversário é esse mês. Caso deseje me presentear, tenho uma lista na Amazon :)
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um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Que bonito, tudo. Tava com saudade de te ler! Queria ser seu amigo de sala pra tomar esse cafezinho aí!
Esse texto já foi uma enorme gentileza. Me senti muito representada, só que não me dei bem com meus colegas de segunda graduação, uns 10 anos atrás. Acho que vc está indo no caminho certo. Parabéns pela chamada da Urutau!