Por pura teimosia
🎶é pra vida inteira / acordar na beira de um compromisso / respirar o sonho, invadir a casa / ficar de bobeira pela vida inteira
Aprendi a identificar rostos com botox. Foi algo antinatural de aprender, procedimentos estéticos no geral não fazem parte do meu rol de interesses; mas por efeitos do capitalismo em excesso, aprendi. Antes eu tentava me convencer de que os rostos perfeitos eram frutos de filtro ou manipulação de imagem, que nas redes sociais tudo o que parece não é – o que em parte é verdade e também má interpretação. Nos anos 2020, procedimentos estéticos englobam toda sorte de coisas e são acessíveis na periferia, na esquina de casa do bairro classe média até o mais zilionário spa no litoral da Califórnia. Por mais estranho que possa soar, encontrei nesse aprendizado uma porção de paz interna, um sossego para os incômodos que surgem diariamente, por escolhas que não fiz. É a contragosto que me incomodo com minha imagem e com a imagem alheia e também é sem querer que acumulo informações como extensão de cílios, preenchimento labial, harmonização glútea. Queria ter a opção de gastar meu tempo apenas com interesses pessoais, esquisitos, analógicos e nostálgicos. Mas meus.
A paz comigo mesma é objetivo de vida e ele é inegociável. Sei que é um objetivo audacioso, porque o que eles querem é que a gente não saia do front. Foi a duras penas que entendi que não gosto de guerra e que primo pela minha liberdade. E entendi observando o comportamento de personagens distantes, ficcionais ou reais, mas habitantes de outros planetas. Nos livros, na música e na TV. Uma dessas personagens era Glória Maria, uma mulher incrível que viajava pelo mundo sozinha, se enfiando em altas confusões e aventuras, sobrevivendo e voltando para o estúdio em suas roupas elegantes, contando a nós, telespectadores, algum detalhe sobre a Índia que só alguém apaixonada pelo jornalismo e pela própria experiência poderia trazer. Outra personagem inspiradora que me acompanha desde criança é Madonna, que na última aparição pública levou rechaço por aparentar procedimentos estéticos em excesso. Eu, que passo longe do botox, me pergunto: mas o que raios tenho a ver com as opções de vida alheias?
Glória, Madonna, Gal, Elza, Hilda. Nomes que ranqueio rapidamente como disruptivas, polêmicas e donas de suas vidas. O que será de tão radical que mora numa mulher que vive a própria vida? Na última news, destaquei uma frase de Glória na qual ela defende viver sua vida de acordo com seu desejo porque ninguém iria morrer por ela. A trajetória dessas mulheres me ajuda a aprender como driblar estatísticas, como enganar o roteiro, como contrariar o destino: que seja seguindo a minha própria vontade. Uma das coisas que mais ouço nos atendimentos é como saber se está se fazendo a coisa certa e eu sempre respondo que não existe verificação com cem por cento de certeza, mas que existem sinais pelo caminho que funcionam como bandeirinhas para seguirmos em frente. E é nelas que temos que confiar. Nessa semana, duas bandeirolas me acenaram: Glória e sua partida, Madonna e sua firmeza.
É problema de cada um saber como lidar com as próprias questões, dúvidas, inseguranças, paradoxos. Tá todo mundo lá fora buscando um jeito de prosseguir e a maioria de nós lida diariamente com o assombro de que de repente isso tudo vai acabar. O meu isso daqui atualmente mora na escrita. É, isso daqui, esse frisson de encadear palavras pensando em endereçá-las a ninguém. Esse fio que passa pela minha espinha, que arrepia o couro cabeludo quando assisto à uma série boba, para desopilar as ideias e de repente um arrebatamento: meu deus, vou morrer. Respiro fundo, me organizo, volto os pés no chão, viajo em todos os pensamentos absurdos e retomo. Eu escrevo para encontrar meu lugar à sombra. Para repousar em meio a todas as tormentas. Para dizer algo a ninguém. Sabendo que alguém vai ler. E também que um dia, tudo isso vai desaparecer. E eu também.
Por enquanto, a minha busca pela mentirosa eternidade não é no botox. Ela se faz aqui também nesse texto, onde estou de mãos dadas, com as palavras, girando em ciranda. Me repito com mais frequência do que gostaria, porque meu vocabulário, apesar de curioso e entusiasmado, é reduzido. Tenho palavras preferidas, e também tenho as que me assustam e as que não compartilho com ninguém. Ao criar essa newsletter dois anos atrás, entrei num avião e fui escrevendo o roteiro ao longo da viagem, as novas aventuras sem destino certo. Um pouco de Glória, um pouco de Madonna, do meu jeitinho. Uma flâneuse das palavras, experimentando estilos e ritmos, passadas em descompasso e contando com uma cadeira no canto do salão pra descansar quando quiser.
O estado de escrita é estado de presença: eis me aqui. Estou comigo, estou no espelho, estou com vocês. Vou viver do meu jeito, vou estar aqui, esquisita, inquieta, impermanente. Contrariar o destino, driblar as estatísticas, fazer o que diabos eu quiser: por pura teimosia.
Gesta
Onde começa e acaba
estando em tudo e em nada
estar na origem: água.
- Olga Sawary
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um abraço,
paulamaria.
Sou dessas pessoas que está envelhecendo naturalmente. Amo minhas cãs e sigo sem maquiagem - salvo exceções, em algum evento em que eu esteja muito disposta a me empetecar. Acredita que não usei maquiagem no meu casamento? Acho lindo uma velhinha natural
a grande luta de encarar a finitude... quão complexo é esse lugar né?
o que me acalma de certa maneira é o fato de que seremos todos lembrança - busco ser uma legal rs
obrigada por compartilhar :)