Tenho apreço por velharias: coisas, lugares, lembranças. As amigas astrológicas diriam que é culpa do signo - sou canceriana, mas é que também cresci cercada por pequenos tesouros. Um prato da bisavó, uma blusa da mãe quando jovem, um livro herdado do pai, um livro roubado da biblioteca da escola da infância. Coisas com história, muitas coisas sempre ao meu redor. Na casa dos meus pais, um grande museu se apresenta quando abrimos a porta da sala. Talvez esse seja o motivo do meu gosto pelo passado, muito mais do que a culpa do signo solar.
Gostar e ter muitas coisas dá trabalho. Fugindo do estereótipo dos programas de TV sobre acumuladores, que expõem pessoas adoecidas de capitalismo, ter muitas coisas pode ter outra cara. Colecionadores precisam cuidar, fazer manutenção, verificar com regularidade as coisas que acumulam, e, nesse processo, é possível se especializar numa espécie curadoria, que pode ser no estilo pop de Marie Kondo - que sinceramente não curto - ou qualquer outro método maluco que você mesma tenha inventado. Vale tudo, a coleção é sua! Nem tudo ‘splarka joy’, você tem que encontrar um caminho próprio nas escolhas. E isso é libertador.
Nessa curadoria dos acúmulos, treinei meu gosto pessoal. Consigo me desfazer dos objetos sem grandes dramas -se não for uma imposição do outro sobre o meu julgo pessoal. Já aconteceu de me sentir forçada a largar coisas/lugares/situações que eu não queria, porque a vida não acontece no planejamento, ela mete seu próprio louco. Essa caixinha na qual cada pessoa está inserida, nos joga constantemente no desconhecido e as perdas serão inevitáveis. A gente que se vire (e se vira!). Se nos resta pouca escolha diante do implanejável, é bom lembrar que tudo tem um preço: agarrar ou soltar, manter ou desfazer, ficar ou sair. Toda escolha tem seu efeito - às vezes a gente não sabe muito bem qual é, mas no fundo, deseja. Porque o que a gente quer é poder continuar.
“Entendi que a vida não tece apenas uma teia de perdas mas nos proporciona uma sucessão de ganhos. O equilíbrio da balança depende muito do que soubermos e quisermos enxergar.” — Lya Luft no livro Perdas e Ganhos
Escolher coisas quer dizer também perder outras. Então, do ladinho do apreço, mora o medo de perdê-las, seja pelo desgaste, pelas mudanças, pelos furtos, pelas avalanches emocionais. Já tentei ser uma pessoa ‘desapegada’ e não funcionou. Qualquer tentativa ‘minimalista’ acaba com meu sorriso, me vejo obrigada a me desfazer de coisas que são importantes e o luto delas segue comigo. Parece pior carregar essa culpa do que a coisa em si, outro dia contei sobre a blusa de libélula que jamais reencontrei. Tenho arrepios de lembrar daquele filme que famoso na Netflix e que todo mundo achou UAU. Vale rever, pra quem tiver estômago. Um tiquinho de consciência de raça, classe e gênero implode o filme em cinco minutos. Sei que até aqui posso parecer uma pessoa apegada aos excessos, é difícil mesmo explicar a diferença entre o acúmulo que o capitalismo nos enfiou goela abaixo do gosto pelas coleções.
Para uma me tornar uma colecionadora ao invés de acumuladora, precisei de espaço, respeito e tempo. Espaço físico, um teto meu, que começou num pequeno armário quando criança e hoje é uma casa. Respeito pelos processos investigatórios, onde a experimentação de estilo e de gosto pôde aparecer sem imposições alheias. E tempo porque… Bom, o passar do tempo é o maior aliado nos nossos aprendizados. Sim, termino com esse clichê…
“Enquanto eu deixava “para amanhã”, continuava o desespero toda manhã diante do papel branco. E a ideia? Não tinha mais. Então eu resolvi tomar nota de tudo que me ocorria.” - Clarice Lispector no livro A paixão segundo G.H.
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Um abraço e nos vemos na próxima edição,
paulamaria.
às vezes a gente nem percebe o tanto de coisa que vai juntando, né :~ lembrei de drummond, que perdia um poema para ganhar outro. amei a edição, Paula <3 um beijo
Caramba, me identifiquei muito com essa leitura. Me mudei para Portugal agora além de tive que desapegar de muita coisa importante, além de revisar e eleger tantas outras para trazer. É quase uma sessão de terapia. Bjs!