Auto (fan)ficção
"ninguém vai entender / o que eu pensei / o que eu senti / se já não quer mais / me dizer o que foi que eu fiz / e dizer o que foi que eu quis" (mariana davies)
Em alguma edição no passado comentei sobre a dificuldade em escrever ficção. A escriba é uma pessoa que esculpe palavras, pesca em águas profundas e assa pães de fermentação longa – ou seja, as coisas não caem do céu para o papel. Além disso, quem escreve tem o dever de pegar emprestado da vida real personagens, acontecimentos e lugares. A ficção tem que ser factível – lembro que foi o Bito quem me disse isso, mas foi outra pessoa que falou para ele. Sendo assim, não é de se espantar que as nossas próprias histórias se tornem temas (e obsessões) de nossos processos artísticos – aqui, me derramo frequentemente nas palavras que você lê. Pra quem ainda não sacou, uso dessa pesquisa incessante da palavra certa como uma das saídas de elaboração do vivido. Resolve? Nem sempre. Mas dá forma.
parece que se você fica algum
tempo tentando decidir algumas coisas simples
se cria no espaço-tempo uma possibilidade mí-
nima de que você exista em uma linha qualquer
de alguma ficção.
(p.24)*
E a forma, adivinhe, não basta. Além de escrever sobre o vivido, que por si só já carrega uma perspectiva inventiva, também me amarro em imaginar ficções em cima dos meus acontecimentos. Frequentemente sou pega em flagrante batendo altos papos sozinha, em voz alta, não raro, em inglês ou francês. Travo centenas de diálogos imaginários que nunca tive e provavelmente nunca terei, ensaio repetidas cenas antigas e desgastadas, com pessoas que nem fazem mais parte da configuração atual da vida – e que seguem cutucando as piores dúvidas existenciais.
a tragédia é inevitável
nós estamos vivos,
as coisas acontecem
(p.26)*
Penso que poderia ter sido autora de fanfic em fóruns online, como uma dúzia de escritoras que conheço, o problema é que meus romances favoritos eram as minhas próprias historinhas de amor. Fanficar os próprios romances sem leitores críticos da história real? Acho que seria impossível – e hoje em dia renderia processos judiciais. Talvez tudo isso tenha me perturbado o juízo e me feito escrever nessa mesinha desconfortável de avião porque voltar para casa remexe os móveis dentro de mim como um terremoto e eu detesto bagunça. Escrevo para arrumar o lar, trazer o prumo de volta. É por onde sei começar. Terapia, academia, remédio, silêncio, meu travesseiro – isso vem depois. A urgência eu despejo no papel.
acreditar na ficção permite que algo aconteça
a poesia é uma pedra uma porta aberta
e não sabemos se o visitante que vem
vai entrar fechar ou se manter à frente
(p.71)*
No avião, além do texto da news, também escrevi poesia. Fica aí um presente, uma (auto)exposição:
minhas autofics me tomam de assalto
estou no banho lavando o umbigo
do nada é 2019 e digo a você
que não entendo nada - pela terceira vez
e dano a falar em inglês
(como uma idiota)
percebo e diminuo o tom da voz
mas continuo a falar, com vergonha
lavo os pés as pernas a bunda
o sabonete cai no chão
e me pego chorando
como se fosse 2018
como se a casa desmoronasse
[mais uma vez
e eu de novo não entendo nada
porque foi carnaval e foliamos
[felizes ou quase
a ficção não resolve meus puzzles
quebra-cabeças de cinco mil peças
que não cabem no chão da sala
ainda não lavei o cabelo e o shampoo
acabou
será que o césar que beijei em 1999
na festa do arroba
ainda está vivo?
ainda ouço todas as mesmas músicas
que gostava em 1996
(o rádio nunca vai acabar, sorry)
mas ninguém nunca me dedicou
more than words na litoral love songs
escrevo poemas e perco todos no box
os azulejos ensebados de sabão e condicionador
usei o shampoo dele
queria saber qual o dela
after winter must come spring
se eu usar os nomes
todo mundo vai descobrir
isso me torna uma piranha tardia
uma piranha em 2023
tudo porque não esqueço de nada
e invento voltando em histórias sem saída
nem roteiro sei fazer
my favorite mistake tem olhos verdes
e os diálogos vinte anos depois
foram iguaizinhos imaginei
[uma tragédia.
*excertos de poemas do livro Uma casa se amarra pelo teto de Viviane Nogueira, Ed. Macondo (2019).
Drops com textos de newsletters amigas:
- matando a pau nessa edição sobre autoficção e autobiografia
- me fez rir alto com os conceitos de retrofit de si e selfwashing
- fazendo poesia era novo pra mim e já amei
Clarice Lispector pedindo uma coca-cola em áudio foi a coisa mais linda que ouvi na semana passada
Uma pesquisa rápida:
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um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Amei sua poesia!!! (e o texto).
Amei, Paula; especialmente o poema. E, claro, minha vida está nas criações todas, alguém escapa disso?