Uma carta para a desesperança
Quando aconteceu / quando algo em que a gente acreditava se perdeu (Paralamas do Sucesso)
São Paulo, 13 de setembro de 2024.
Oi pessoal, como estão?
Antes do assunto inevitável da semana, gostaria de agradecer o carinho dos comentários na última edição da newsletter. Relutei em expôr intimidade e sofrimento num texto com cara de inacabado, mas vocês como sempre foram muito gentis na recepção. Isso prova, mais uma vez, o ponto central de minha defesa quando sou convidada a falar sobre a experiência de ter uma newsletter, de escrever outras coisas que não um livro. Digo com tranquilidade que é uma delícia, que me sinto acompanhada e respeitada – e que, por isso, minha escrita cresce. Estive nas duas últimas semanas na Primavera dos Livros e na Bienal de São Paulo, e em ambas as ocasiões, vocês estiveram comigo. Obrigada pela companhia e pelas trocas!
Por aqui, ando relativamente bem, dadas as circunstâncias. Estou na semana de <hormônios bons>, então parece mais fácil enfrentar a crise climática e seus desdobramentos. É sobre isso que tento falar nesta carta, sobre a necessidade de regar a desesperança para que minimamente dela brote alguma possibilidade. O mundo anda <tão> complicado, já disse o Renato Russo em 1991, quando as complicações eram outras. As coisas mudaram, nem todas para pior, mas mudaram. Penso que a palavra-chave seja <mudança>, que traz, inevitavelmente, <crises>, como esta tão aguda e dolorosa que estamos passando no último mês com as secas prolongadas e as queimadas criminosas no Brasil.
Aos nove anos, pedi ajuda aos meus pais para escrever uma carta para o Greenpeace, depois de ver uma propaganda da instituição na revista Recreio. Acabei enviando um <fax> e recebi uma carta meses depois me explicando como fazer para contribuir com a causa. Eram os anos noventa e o dinheiro tava curto, não deu para ajudar... Fui uma criança muito interessada em preservação ambiental, pensei até mesmo em prestar vestibular para Oceanografia quando adolescente. A natureza era tema recorrente não só na matéria de Ciências, mas também Geografia, História e até Religião – estudei em colégio católico por 13 anos. Assisti, numa tevê de tubo pelo menos umas três vezes o curta sobre a Ilha das Flores, um grande clássico das professoras mais moderninhas. Ilha das Flores era um aterro sanitário na cidade de Porto Alegre – RS. Dei uma pausa na escrita dessa carta, reassisti ao filme e estou mais uma vez maravilhada. Em menos de quinze minutos, Jorge Furtado apresenta uma espécie de reportagem televisiva, que começa com “O guarani” de trilha sonora e na tela, lê-se: deus não existe. Como pude assistir isso numa escola católica? Não sei. Os minutos que se seguem – e são poucos, cerca de treze – encadeiam-se informações sobre os seres que habitam as cidades e a relação circular entre eles. O humano, o tomate, a prova de história. Ao final (isso não é exatamente um spoiler), o narrador declama os mais famosos versos de Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles:
Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda.
Pensando em liberdade, esse sonho que carrega multiplicidade de sentidos, tento olhar pro futuro sem olhos de desistência. O mundo mudou pra caramba desde quando escrevi um fax pro Greenpeace e assisti a Ilha das Flores pela primeira vez. A natureza sofre muito mais hoje do que sofria trinta anos atrás, quando muita gente já estava gritando e esbravejando sobre as consequências do capitalismo, essa coisa voraz que carcome vigorosamente tudo. Parte daquilo que chamamos de apocalipse já é agora, as mudanças brutais não virão apenas no final do século, quando tivermos partido dessa vida. Eduardo Galeano diz que chamamos os desastres de <naturais> como se a natureza fosse a vilã e não a vítima desse modo de vida. Enchente, seca, fumaça. Nada disso é natural. São décadas de exploração, violência e poder acumulado na mão de pouquíssimos, trazendo para todos nós este relativo <fim do mundo>. O que foi vivido por populações ribeirinhas e periféricas durante o avanço brutal de indústrias exploratórias agora é espalhado país afora. Em Ilha da Flores este cenário já estava desenhado e até mesmo antes, pois os movimentos ambientalistas questionam e reivindicam por mudanças desde a década de 1960. Galeano, de novo, nos fala: a natureza não é silenciosa. Tentamos calar com muito dejeto, plástico e podridão. E ela segue falando.
Tá, mas e a desesperança causada por isso tudo? O que a gente faz com isso? Eu sei que é duro, duro demais imaginar um futuro possível por dentro da desgraça, achar que alguma <mudança> terá impacto... Não muito tempo atrás vivemos outro <tipo de apocalipse>, tão impensável, desanimador e desesperador quanto o de agora. A pandemia do novo coronavírus trouxe cenários impensáveis que nos provocaram dor, desespero, desesperança, medo, desilusão. Inclusive, em 2020 e 2021, também tivemos períodos de duras estiagens seguidas de incêndios criminosos que se alastraram pelo norte e centro-oeste brasileiros. A lista de sentimentos ruins nessas situações é enorme. Mais de uma vez tentei escrever sobre como lidar com sentimentos ruins e falhei em todas as tentativas. O tema da edição de hoje era esse, inicialmente. Para facilitar meu trabalho, mudei o assunto e a forma, e então o texto foi possível. Talvez essa seja uma das saídas: mudar nosso tema e a forma como lidamos com ele. Os Paralamas do Sucesso tem um verso que me salta na mente agora: Não é o fim do mundo, é só o fim de tudo, que fomos nós. Sem flutuar e sem tocar o fundo, sempre sós. As coisas mudaram, os tempos são outros, o futuro é um desconhecido que assusta. E nós estamos aqui.
Tenho consciência de que separar o lixo da minha casa não vai fazer cosquinha em tudo isso que tá lá fora – e me refiro aqui somente à cidade de São Paulo e sua imensa quantidade de rejeitos que vai parar no leito de rios, no sistema de esgoto e, por fim, nos oceanos. Isso não me impede de continuar separando, de destinar corretamente latinhas, pilhas, tampas de plástico e papelão. Junto a isso, neste momento pesquiso para a eleição que se aproxima, quero votar em uma pessoa que tenha, em seu rol de prioridades, projetos acerca da questão ambiental, que pode ser desde destinação do lixo doméstico, a proteção animal, passando pelo acesso a água e esgoto encanados. Quando eu era criança, víamos na televisão uma propaganda sobre a cólera, uma doença infecciosa intestinal, propagada através de água e alimentos contaminados. Hoje, com um número muito maior de pessoas assistidas pelo tratamento de água e esgoto, já não temos a propaganda na tevê. A paulamaria criança cresceu e pôde ver essa <mudança> acontecer. Elas acontecem também para o melhor. Demoram, precisam de investimento público, de ação social, da nossa energia. É com elas que garantimos outros futuros possíveis.
Assim como há três anos encontramos saída para a pandemia da covid-19 e há trinta anos para a cólera, é possível imaginar outro futuro e agir no presente. Entregar os pontos não parece resolver nem aliviar. Estar viva é um desafio recortado no tempo e no espaço. Ouvir a natureza também é ouvir a nós mesmas. Gosto de carregar um pedaço do olhar e da disposição da criança que escreveu para o Greenpeace, mesmo sendo muito menos ingênua e agora marcada por tantas histórias. Minha utopia é que permanecer neste mundo e sem estar tão subjugada a crueldade desse sistema é reconstruir os laços com a natureza e, acima de tudo, sentir que não estamos desamparados. Afinal de contas, liberdade pode ser a garantia de que possamos seguir diferentes caminhos, com respeito e dignidade. Acho que Cecília Meireles aceitaria essa definição, pelo menos na minha utopia.
Um abraço carinhoso.
Drops:
Outro filme que também se passa num aterro sanitário: Estamira
A corrente literária que pensa sobre futuros otimistas é o solarpunk
Programa de índio, um episódio da
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Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
hoje cheguei a digitar um post super deprê no notes sobre o sentimento de falta de sentido que esses momentos trazem, a desesperança mesmo. acabei apagando pra repensar com <hormônios melhores> haha essa edição chegou na hora certa <3
Paula, adorei a reflexão. Por aqui, tentando não deixar a peteca cair e me munindo de leituras que tragam um cadinho de esperança, que é o que nos resta. ❤️