Tudo sob controle
O coração delator sob as tábuas do assoalho, a mulher dentro do papel de parede amarelo. (Sinéad Gleeson)
Tenho orgulho do meu intestino ser regulado. Não foi sempre assim, mas posso dizer que em grande parte da minha vida, este órgão importante não me deixou preocupada. Dizem que ele funciona como um segundo cérebro – ainda não li nada sobre o assunto com seriedade, mas confio no que ouvi falar baseada na experiência pessoal. A ligação entre as emoções e o intestino pra mim é bem clara, principalmente quando o frio na barriga é um sinal de que preciso me aproximar o mais rápido possível de um banheiro. Apesar de considerar estar em dia com as funções intestinais, vez ou outra ela sinaliza que algo se desequilibrou e nem sempre esse algo tem a ver com o lanche comido na noite anterior ou se estou bebendo uma quantidade suficiente de água. Os sinais do meu intestino, volta e meia, servem como lembrete de que nem sempre estarei no controle da minha vida. Meu segundo cérebro tem uma epifania intestinal, assim por dizer.
Meses depois da rotina de internação com minha avó, volto ao ambiente hospitalar, dessa vez para acompanhar uma amiga numa ressonância magnética. A antessala do exame tem trilha sonora, comandada por um millennial – acredito que o técnico na sala de operações. Como sei? O toque que sinaliza mensagens do celular ligado no bluetooth é o inconfundível “óûl” do ICQ, notificações que entrecortam um hit do CPM 22, cantarolado pela técnica que estende o braço e me entrega a prancheta com o formulário de acompanhante, afim de garantir que eu não seja sugada pela máquina lá dentro. Entramos na sala selada por uma porta pesada e levo meu livro da vez. Me sento no final do túnel, numa pilha de cadeiras de plástico. Faz muito frio e não levei casaco. Enquanto minha amiga é preparada, conversamos para quebrar o gelo – não da sala, mas do medo. Quando o exame começa, parte de mim se transporta para setembro de 2023, porém o barulho hospitalar agora se parece com música eletrônica de uma rave alemã. Só o tumtum repetido por segundos, intervalado por um white noise quase reconfortante, se não fosse o fato de estarmos num quarto fechado com uma máquina que faz revólveres atirarem sozinhos. Nos intervalos em que a máquina pára de girar (?), faço um cafuné nos cabelos curtos e grisalhos de minha amiga, dizendo: estou aqui, logo acabamos. O exame termina depois de dez ou quinze minutos, deixamos a trilha sonora, os corredores inócuos do hospital, tomamos um café na cantina e seguimos o dia.
Além da lembrança com vovó, a manhã como acompanhante terapêutica me fez viajar um pouco mais pro passado. Por volta de 2011 ou 2012, tive infecções urinárias de repetição. O ginecologista já não conseguia me auxiliar e indicou que procurasse um urologista. Um mini pânico se instaurou, mas não me paralisou e marquei e fui à consulta. Lembro até hoje que usava um turbante de lenço, algo que me salvava nos dias de cabelo sujo e preguiça. Deixei o carro estacionado atrás do drive thru do Mc Donald’s da Avenida Champagnat e chorei por minutos, sem virar a chave na ignição. O urologista também não sabia como me ajudar e me pediu uma tomografia a fim de procurar por pistas. Novamente, um mini pânico. Repito que o pânico é mini porque me considero uma pessoa muito controlada. Eu estava sozinha, sempre fiz minhas coisas sozinha. Não costumo pedir ajuda, sou a filha mais velha que cresceu sendo madura-pra-idade. E quem tem esse perfil é constantemente relegado à própria “sorte” de saber cuidar de si mesma. Fazer exames complicados, enfrentar médicos e consultas sem diagnóstico, resolver papeladas burocráticas, experimentar vestido de noiva, carregar mudança de ida, descer todas as caixas de mudança de volta, fechar contratos, assinar o divórcio num dia chuvoso. A lista de momentos difíceis que poderiam ter me panicado é longa, mas eu panicava mini, em nome do controle, em nome de dar conta de mim. As bobagens que a gente acredita, como se tudo não tivesse um preço ali no caixa, ao lado da entrada principal da vida.
Nessas três décadas de vida em modo tudo-sob-controle, aprendi a ler meus sinais. Não sei de tudo que se passa comigo (alguém quer saber?), contudo, considero que tenho percepção aguçada no que diz respeito aos processos emocionais e fisiológicos. Entendi que não é apenas meu intestino que me sinaliza, como nas infecções urinárias que citei acima que tinham tudo a ver com o longo período de desemprego e incerteza após me formar em psicologia. Todo nosso corpo tem comportamento e memória. Somos compostos de camadas em todos os níveis: somos croissants de tecidos complexos e inteligentes. Nas épocas mais difíceis que vivi, o esforço para o controle se traduzia em sintomas: dores de barriga, infecções urinárias, gastrite, erupções cutâneas, queda de cabelo, sudorese e odores corporais diversos. Sinais. O corpo, que não me deixa esquecer, não funciona quando controlado, pelo menos não em sua plenitude. Controlar o corpo é desejar que ele cumpra certas expectativas sobre as quais ele não tem agência, o que não é justo. Esquecer que somos um corpo é violar nossa própria vida. Em minha leitura atual, a coleção de ensaios Constelações - ensaios do corpo, Sinéad Gleeson diz:
O corpo sempre fica para depois. Não paramos para pensar em como o coração bate em ritmo constante, nem para observar nossos metatarsos abrindo-se como um leque a cada passo. A menos que ele seja acometido de prazer ou dor, não temos em mente esse amontoado móvel de veias, sangue e ossos. Os pulmões se enchem, os músculos se contraem e não temos por que supor que um dia pararão. Até que, de repente, algo muda: uma pane corporal. O corpo – sua presença, seu peso – é, ao mesmo tempo, impossível de ignorar e constantemente desconsiderado.
Devoro este livro na mesma medida em que não quero que acabe. Pude conhecer a autora na última FLIP, numa mesa interessantíssima composta pela tradutora de Constelações, a professora Maria Rita Drumond Viana e da jornalista
, que mediou a conversa na Casa Paratodos. Nesta conversa, podemos conhecer o processo da tradução do livro, da relação da autora com o Brasil, sua história como escritora e também comentários sobre saúde do corpo de uma mulher a partir de sua experiência pessoal, de uma vida com diversas internações, tratamentos e cirurgias. Constelações não é um livro sobre saúde, é um livro sobre vida. O passeio entre as experiências pessoais, cultura pop e referências literárias nos aproximam da autora de um jeito carinhoso e gentil. Mesmo não sendo mãe, o capítulo “Sobre a natureza atômica dos trimestres” resgatou em mim a menina-muito-madura-pra-idade que sempre teve mil perguntas sem respostas e a pôs no colo, com cafuné e uma xícara quente de chá. O esforço para o controle, feito a vida inteira por mim, podia ser afrouxado, precisa ser afrouxado. É muito bom que meu intestino seja regulado, mas se qualquer outra coisa de repente mudar suas funções normais, preciso deitar gentilmente as rédeas nas minhas coxas. Posso sentir tudo, “paz ou fúria interior”, como diz Sinéad. Não posso controlar a vida, nem a morte – o que posso fazer é habitar meu corpo.Leia também:
Se gosta do que escrevo:
apoie continuamente através dessa plataforma
presenteie com um pix em oi.pmescreve@gmail.com
espalhe a palavra da news para sua rede
Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Que escândalo este texto. " quem tem esse perfil é constantemente relegado à própria “sorte” de saber cuidar de si mesma.", estamos juntas. O meu corpo conversa comigo, me lembra que não tenho controle, do meu lugar no mundo. Mas, quando mais nova, entrava em pânico justamente por esses lembretes, resistia tanto e sofria mais. Enfim... uma hora a gente aprende <3 ps: curiosa com o livro.