Estética no esquecimento
🐝As abelhas palavras esvoaçam / Isso é o que nos basta / Não queremos / Mais absolutamente nada. (Assionara Souza)
Peço desculpas pelo erro que deixei passar na edição que seguiu por e-mail. Troquei os nomes das personagens do livro da Ferrante, confundi a profa. Galiani com a profa. Olivieiro. O texto que fica disponível no site já segue corrigido. Obrigada pela leitura!
Tenho um combinado com minha irmã: caso alguma de nós, em qualquer época de nossas vidas, fique hospitalizada por um longo período, uma cuidará da outra, com uma tarefa específica dentre as muitas que um adoecimento exige da cuidadora: o encargo de retirar à pinça os pelos duros e doloridos que insistem em nascer no queixo, que chamamos jocosamente de barba. Para garantir o mínimo de boniteza fraterna, num local que impossibilita quase todo o tipo de beleza, o acordo foi selado. Sei que pode parecer superficial, bobo e até infantil de nossa parte, mas um trato entre irmãs é pacto de sangue, estamos aqui para garantir uma à outra nossa dignidade. O problema desse pacto é que contamos uma com a outra, sem saber se estaremos lá. O dilema da barba também veio à tona no último mês, nas infinitas horas no frio da UTI do hospital, acompanhando vovó.
Eu, que não pretendo ter filhos, pensei nesse pacto e na dureza de encarregar alguém com meu cuidado. No peso de delegar aos nossos entes queridos a presença física e emocional em nossos momentos de fragilidade. Como disse na última carta, é inevitável que a situação de alguém próximo nos convoque a pensar em nós mesmas, na nossa humanidade, no e se fosse comigo? Neste caso, a frase mudou para quando for comigo. Pensei e senti na carne, nas pernas inchadas de ficar em pé, na pele que pipocava cravos e espinhas de estresse, nas olheiras que se afundavam de tristeza e preocupação: um dia, se longeva for, será a minha vez. E naquele momento não desejei que minha irmã cumprisse nosso pacto. Não parecia justo, não parecia possível poder deslocar alguém de sua própria vida só para cuidar de mim. O pensamento se entrecortava com as cenas do presente: entre cochilos, devaneios e suspiros, minha avó pedia repetidamente: me tira daqui, por favor. Eu dizia – como dizemos para ela agora que está em casa, ainda acamada, mas bem – “estamos esperando o motorista de táxi, ele está a caminho, logo logo iremos embora”. “Posso ir mesmo com você? Não vou te atrapalhar?”, respondia vovó, em casa ou no hospital. Claro que sim, vó, sempre. A repetição, no entanto, não traz sossego permanente. Para essa doença do esquecimento, todo lugar é um não lugar. Toda ajuda parece sacrifício.
Como era uma mulher sozinha, idosa e que não estava bem, voltei a perguntar na vizinhança. Uma senhora que morava porta a porta com a professora se decidiu a pedir ajuda ao filho. O jovem entrou no apartamento passando pela varandinha de sua casa para uma das janelas da professora. Encontrou-a no assoalho da cozinha, de camisola, desmaiada. Chamaram o médico, que decidiu interná-la imediatamente no hospital. Levaram-na para baixo nos braços. Pude vê-la enquanto saía pelo portão, desarrumada, com o rosto todo inchado, ela, que sempre ia à escola com o maior apuro. Tinha olhos assustados. Fiz-lhe sinal de saudação, abaixou o olhar. Ajeitaram-na em um carro que partiu à toda, buzinando ferozmente. (p.92-93 – História do novo sobrenome, Elena Ferrante)
De volta à minha casa, retomo a leitura do segundo volume da tetralogia napolitana de Elena Ferrante. A cena da professora Oliviero sequestra minha atenção. Daqueles trechos que fazem fechar o livro de repente e impõem uma longa pausa. Reli algumas vezes: “Tinha os olhos assustados” e em todas elas, os olhos que imaginava eram os olhos de minha avó, ora chorosos pedindo para ir embora, ora furiosos, xingando, vociferando, mostrando seu horror, seu medo diante da fragilidade de não saber mais se cuidar sozinha – e de ter perdido até mesmo o que conhece sobre si. Noutro dia, deixei peças de roupas de molho numa água de Vanish e lembrei dela, em seu quintal, me ensinando a quarar paninhos ao sol. Me dei conta da quantidade de coisas que aprendi com ela, uma infinitude de pequenos gestos cotidianos, desde lavar um pano de prato, a cerzir um furo na blusa, não usar maquiagem para se sentir bonita até como cultivar seu espaço pessoal, num grupo de costuras na igreja ou nas viagens com suas irmãs. Minha avó de olhos assustados é um modelo de mulher para mim e cuidou de meus passos, atenta, como a professora Oliviero tentou fazer com Lenu.
Revisitar as memórias de aprendizado com vovó mexeu em outras partes do meu sótão interno. Frequentemente, nas negociações dos pactos entre irmãs, pensamos quais serão nossas memórias carrossel. Do que, de quem e de quais lugares lembraremos. Quais histórias iremos repetir incansavelmente, quais as personagens que, mesmo com a memória esfarelada, iremos trazer nome e sobrenome? Mas, acima de tudo, me intrigam quais sentimentos emergirão com essas histórias daqui a sessenta anos. A aula de educação física que levei um tapa da professora? O dia que matei aula em Salvador e tomei uma tempestade sem abrigo? Quando Vitor arremessou seu cantil em minha testa, aos seis anos? Da declaração de amor por e-mail citando Goo Goo Dolls em 2001? Da amizade rompida um mês antes do mundo acabar na pandemia? Do gosto amargo de deixar uma casa inteira pra trás e sonhos engolidos que nunca digeri? Difícil prever, essas são minhas memórias carrossel em 2023 e, ainda que meus olhos já se arregalem de pavor com a velocidade do tempo e das marcas inevitáveis que deixa em meu corpo, não posso saber de meu futuro, sequer se realmente estarei – como temo – sozinha.
Não sei se alguém vai estar lá para tirar os pelos que teimosamente nascem em meu queixo. Também não tenho ideia se, ao me assustar com a fragilidade de meu corpo, encontrarei um olhar atento ao meu que possa me saudar ou mesmo emitir uma palavra de conforto. O que acalma meu coração hoje é construir um corpo que suporte os meus desejos, que esteja presente no cuidado da minha rede e que busque ficar em paz com suas escolhas. O que já é uma baita responsabilidade. Como escrevi fechando um #poemadecelular outro dia: os dias sem brilho duram mais – e aqui onde moro tem sido difícil sair sol para quarar as roupas. Pra isso, tem Vanish e o doce-amargo das memórias que ainda não se esfarelaram com o tempo.
Drops:
O
trouxe um relato sobre harpias que tocou muito meu coração. Minha irmã é veterinária e vai estudar essas aves magníficas em seu doutorado.A
escreveu sobre a MTV e os dez anos do fim da emissora que me educou sobre cultura pop.A roda de conversa na
foi muito maneira! Obrigada a todo mundo que apareceu por lá. Deu aquele medo de ninguém aparecer, claro! Colocar a cara no mundo tem dessas, mas rolou e foi ótimo! Deixo aqui um link para um fio de newsletters literárias que tem a ver com o tema do bate papo, onde comentei, entre outras coisas, que o novo espaço da crônica é nas newsletters!Continuo com a rifa para colaborar com custos da ida à Flip 2023. Os prêmios são dois livros (uma coletânea + meu novo de poemas) e duas prints. Bilhetes a dez reais, fale comigo!
Estou assistindo a filmes de terror ao longo do mês e deve sair um post sobre isso em breve. Por hora, indico Umma (2022), disponível no streaming da HBO.
Estou com agenda aberta para leitura crítica de poesia e contos!
um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Que emoção ler a sua reflexão hoje pela manhã, Paula! Obrigada por esse afago - compartilhamos muitas preocupações/indagações. Um beijo e um lindo sábado pra você.
Que lindo. Que lindo! Beijos em vocês.