Tradução e equivalência
Somente o tempo, o tempo só / Dirá se irei luz ou permanecerei pó (Gilberto Gil)
Oi! Se você é pessoa novata por aqui, responde ao meu censo? Quero conhecer melhor quem me lê. Em modo anônimo e rápido. Desde já, agradeço :)
2024 tem sido um ano em que o tema da tradução se adensou nos meus interesses. No planejamento anual, eu havia me programado para tentar o Programa Formativo para Tradutores Literários da Casa Guilherme de Almeida, mas devido ao tempo já comprometido com estudo e trabalho, adiei o plano. Colateralmente, tenho experimentado de maneira autodidata traduzir poemas, excertos de texto e legendas para pequenos vídeos que posto nos reels do Instagram. Além disso, neste semestre, consegui me matricular no curso Introdução aos Estudos Tradutológicos com a professora Heloísa Cintrão, que concentra seus estudos na área de tradução e também no espanhol, a segunda língua que estou me habilitando. A cada aula, uma explosão de ideias que colaboram com o comichão de investir e trabalhar nesta área. A tradução como profissão é ainda bastante invisibilizada e em termos de academia, muitas vezes menosprezada. Contudo, o trabalho dessas pessoas é belo, profundo e essencial para a construção dos saberes e a circulação de obras em todo o mundo.
O linguista russo Roman Jakobson é uma das referências no mundo da tradução. Segundo ele, entender uma palavra é um fenômeno semiótico, como por exemplo, sabemos o que é o néctar dos deuses (a ambrosia) ainda que jamais possamos conhecê-lo. Jakobson entende que o significado de uma coisa é a sua tradução. Traduzir não é pura e simplesmente a troca de um código por outro código, mas a tentativa de construir mensagens inteiras. Sua teoria apresenta três tipos de tradução: intralingual ou reformulação, que é a interpretação de signos dentro de uma mesma língua; interlingual ou propriamente dita, que é a transposição de uma língua para a outra; intersemiótica ou transmutação, a transformação de signos verbais ou não verbais. É comum entre todos esses tipos que não exista uma total equivalência, ainda que seja dentro de uma própria língua. Uma cuia não é uma caneca, embora semanticamente se aproximem, as duas coisas servem para um mesmo fim: tomar chá, por exemplo. E outra: chá não é chimarrão, mesmo que ambos sejam explicados como compostos de ervas desidratadas no qual se adiciona água quente.
A professora Rosemary Arrojo, da Universidade Estadual de Campinas, que escreveu o livro Oficina de tradução – a teoria na prática, defende que o trabalho de quem traduz é um trabalho de co-autoria. Tal definição entra em conflito com outro teórico brasileiro, o professor, escritor e tradutor Paulo Henriques Britto, que sustenta o conceito de <fidelidade ao original> como fator de importância central na tradução. Caso você se interesse mais pelo tema, sugiro a leitura deste artigo. Na esteira do pensamento de Rosemary, podemos citar outra referência da área, o linguista escocês John Cunninson Catford. Ele entende que os processos de tradução podem se utilizar dos processos de descrição das línguas (ou da linguagem – o termo em inglês é <language>). Ou seja: a tradução pode ser definida através de ferramentas da linguística – uma tradução contém diversas camadas.
Em aula, trabalhamos com alguns exemplos, como no disco Kaya N'Gan Daya de Gilberto Gil, no qual o cantor e compositor se utiliza de diferentes processos linguísticos para produzir suas versões – como são chamadas as traduções de música – de canções de Bob Marley, com letras originalmente escritas em inglês. O disco, lançado em 2002, foi gravado no Rio de Janeiro e na Jamaica e contém além das versões, regravações de sucessos do mestre do reggae. Vamos ao disco: em Não chores mais, temos a sustentação da negação no título, porém não há tradução literal de No woman, no cry. O sentido de não chorar permanece, assim como a última sílaba forte em ambas as frases (“cry” e “mais” são marcadas ao final dos versos). A letra, no entanto, passou por outros processos adaptativos na versão brasileira. Em inglês, os versos contam sobre as alegrias e tristezas da vida de uma juventude que cresce Trenchtown na Jamaica. Gilberto Gil localiza as alegrias e tristezas de uma juventude, mas transpõe para a realidade brasileira, sobre sua própria vida quando jovem, em meio às mazelas e lutas contra o governo militar ditatorial entre as décadas de 1960-1980. Estes recursos de adaptação, modulação ou substituição são muito utilizados em tradução, inclusive em tradução literária (passe a observar notas de tradução, é um caminho sem volta!). Outro exemplo de Gil, afora este disco, é a belíssima versão de I Just Called to Say I Love You, de Stevie Wonder. Em Só chamei porque te amo, a estrutura inicial dos versos, feita com frases negativas foi mantida (No New Year's Day to celebrate / Não é Natal Nem ano bom), que permite a permanência tanto de sentido, quanto de sonoridade, a nasalidade do <não> em ambas as línguas. O sentido geral da letra, que no idioma fonte descreve o passar de um ano com referências mês a mês, não funcionaria do mesmo jeito em português. A tradução literal ou mesmo adaptada ou modulada não teria o mesmo efeito. No jogo rítmico, melódico e semântico, Gil com maestria volteia a linguagem e faz isso:
No summer's high
No warm July
No harvest Moon to light one tender August night
No autumn breeze
No falling leaves
Not even time for birds to fly to southern skies
—
Nem carnaval
Nem São João
Nenhum balão no céu
Nem luar no sertão
Nenhuma foto no jornal
Nenhuma nota na coluna social
Nenhuma múmia se mexeu
Nenhum milagre da ciência
Aconteceu
Nenhum motivo nem razão
Quando a saudade vem
Não tem explicação
Convido vocês a revisitar essas canções a partir dessas pequenas observações. Estes foram alguns apontamentos que fiz durante as aulas e que tem transformado o modo como leio, ouço, assisto outros idiomas. O assunto tem me interessado cada vez mais porque língua é instrumento de poder, logo, a tradução também é. O modo como escolhemos usar palavras não é arbitrário, então, porque numa tradução seria? Devo retomar este tema outras vezes nessa newsletter e gostaria de trocar com vocês. Deixo, antes das indicações dos Drops, uma tradução no estilo <cara de pau> de minha parte, os quatro primeiros versos do poema On translating Eugene Onegin, de Vladimir Nabokov:
What is translation? On a platter
A poet's pale and glaring head,
A parrot's screech, a monkey's chatter,
And profanation of the dead.
—
O que é uma tradução? Numa bandeja
A cabeça do poeta pálida e lustrosa
O papo do papagaio, o mico que cacareja
E aos falecidos, afrontosa.
Drops:
Quem traduziu - um coletivo de tradutoras brasileiras
Uma teoria línguística da tradução, John C. Catford
Uma das leituras preferidas de 2024: Viver e traduzir, Laura Wittner
Newsletters que li e salvei na última semana:
Nós, os jovelhos - eu me identificando com o
O cinema e Caetano, por
- sobre a Rosa Monteiro
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Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
o trabalho de tradução é incrivelmente complexo e rico. curiosamente, uma boa tradução, em geral, costuma ser discreta, enquanto uma tradução mal feita logo salta aos olhos.
Tou atrasado nas newsletters, depois volto pra ler com calma, mas vim agradecer a menção. :)