Um fotógrafo famoso deu uma declaração polêmica infeliz outro dia. Segundo o tal, “foto instantânea de celular não tem valor estético”. Deixo seu nome ausente de propósito, me importo mais com o que ele disse do que quem ele é - juro. Sua frase me pegou de jeito e me perguntei qual o valor estético para qualquer coisa nos dias de hoje. Estamos numa crise braba de paradigmas, sim sim. Mas qual a intenção nessa definição de que algo, categoricamente, não tem valor? Algo que está nas mãos e olhares de muitos. Estética. De quem, para quem. Como. Muitas perguntas, que agora convocam a olhar quem tá por trás das ‘lentes’ dessa frase. Ganhou um biscoito da sorte quem disse um homem-cis-branco-milionário. Quem diria? (todo mundo diria).
Na contramão da homice de Salgado, tenho minha fotógrafa preferida. Ela é pernambucana, brava e ainda por cima, poeta: Adelaide Ivanova. Conheci seu trabalho através do maravilhoso mundo dos blogs, em meados dos anos 2000. O nome curioso de sua página - vodcabarata - pegou demais na jovem paulamaria que ainda não tomava cerveja, apenas destilados. Estética, beibes. Por anos pude acompanhar Ivi em seus posts na plataforma blogspot, comprei fotos suas em saldões, chorei junto pelos términos de amores, me apaixonei por sua avó, aprendi que tradução não é algo literal, conheci Susan Sontag e compartilhei a admiração por mamãe Madge. Adelaide não é a fotógrafa mais técnica que conheço e nem a mais hypada. O que me pega nas suas fotos…. Bem. Eu não sei direito o que é. Certa vez, comentei com uma amiga fotógrafa sobre minha paixão nas fotos de Ivi e ela comentou que não via nada demais, que as fotos são… comuns. Pois é, acho que é por isso mesmo então. É pelo comum é que me apaixono.
Durante a graduação, fiz disciplinas de outros cursos e dentre elas, Fotografia. Na turma tinha colegas de vários cursos, como arquitetura, design, engenharia e outras psis, o que tornava a aula muito interessante e também um refúgio das aulas demasiadamente humanas. Eu já era entusiasta da fotografia digital e costumava levar minha cybershot pra cima e pra baixo na Ufes. O gostoso das aulas era poder experimentar o modo analógico. Sabe aquele laboratório com luz vermelha clássico de filmes dos anos 90? É tão mágico quanto parece na telinha, é gostoso demais mergulhar o papel fotográfico nas misturas químicas e ver a imagem se revelar… Sair pelo campi, fotografar árvores, chão, pés, colegas. Nada extraordinário, tudo ali, apenas acontecendo. Imagens que quase tem gosto, um tenro gosto de juventude e novidade. Algo assim.
O interesse por fotografia seguiu, ainda que eu tenha desistido da ideia de me tornar, hmm, fotógrafa. Sigo nas experimentações e gosto muito de ver as fotos alheias, a despeito do que o Instagram tenha se tornado, insisto postando no feed e vendo o dos outros! Por lá, tenho um amigo que fotógrafa muito bem. Bem, não é só ele que tem o tino do olho apurado e mãos rápidas e boas de enquadramento. Faço menção honrosa a um dos que mais me inspiram, o Bruno Reis. Faz mais de década que acompanho seus registros do cotidiano pelas internets e suas fotos recorrentemente me emocionam. É quase como se eu pudesse, a cada foto, ser mais um pouquinho íntima da história que ele vai contando sobre si, sobre seu trabalho, sua casa, suas relações. É chegar um tiquim mais perto daquilo que não conseguimos dizer - ou escrever - e, raramente, conseguimos captar num clique. E o Bruno muitas vezes consegue.
Não consigo decidir preferência entre fotos analógicas ou digitais. Sinto que cada uma tem seu propósito, seu lugar no tempo, sua função estética. A maravilhosa editora de moda da Elle, Suyane Ynaya constantemente ressalta a importância da fotografia móvel na mudança de perspectivas do seu trabalho, em como essa tecnologia abriu horizontes que só habitavam em seus sonhos. A possibilidade de construir, editar, mostrar e compartilhar uma estética própria. O espaço possível e pessoal de quem quer falar, com quem quer falar e o que quer falar. Com fotos.
Outro dia, caminhando pelo bairro em busca de um restaurante pra almoçar, encontrei junto ao meio fio, uma sacola com fotos de décadas passadas. Como uma boa caçadora de tesouros, recolhi a sacola e levei pra casa. Parte delas virou uma zine e outras aguardam no canto da mesa o momento de contarem novas histórias. Quando saio em minhas caminhadas, gosto de capturar imagens surpresa, sem escolher o que vou registrar a priori. Nesse dia, as imagens estavam prontas, editadas e impressas, aguardando seu próximo destino. Ter o celular nas mãos é ter a magia duma máquina fotográfica infinita, que facilitou o ímpeto do registro do ordinário. Não é delicioso querer e poder dar forma pra isso sem sentir que o momento passou? Quem é que vai medir, definir, dizer qual o valor estético do que eu escolho recortar e guardar?
Já gastei muito fosfato pensando na quantidade de lixo eletrônico que produzimos com nossos arquivos digitais. Um jogo injusto sobre como antes tínhamos que esperar que uma foto fosse revelada para então saber o que e se a imagem traria algo. Já, inclusive, achei que isso era “melhor”, pois éramos menos ansiosos e apegados com nossas imagens. Depois joguei esses pensamentos no balaio dos pensamentos-bobagem porque poucas coisas são tão importantes assim na escala do tempo da vida. E por que não registrar qualquer bobagem pelo simples e delicioso prazer de poder fazer isso? Mil fotos do mais novo bebê da família, por que não? Quantos de nossos antepassados não tem uma imagem sequer de si mesmos bebêzinhos, ou de seus pais/avós, ou… Mil selfies para descobrir mais do rosto que estranhamos no espelho, experimentar as muitas caras e bocas que podemos ter, ensaiar as personas que habitam nossas expressões. Fotos da casa, do carro, das viagens, da flor que comprou na feira, da festa de aniversário, da formatura, dos ex, do dia na praia, da visita indesejada. Registros. Ordinários. ÍNTIMOS.
Fotografar me ensinou muito sobre mim mesma e sobre o mundo e as pessoas. Pela fotografia pude acompanhar a vida de muitas pessoas que amo - e até mesmo desconheço. Pude ver o mundo lá fora e acreditar que existem muitas outras coisas do lado de lá, outros jeitos, outros modos, outras formas. Quando cito as fotos de meu amigo, que admiro e observo, falo de um mundo que é muito próximo e parecido com o meu e que, ao mesmo tempo, é um mundo completamente dele. Esse é o valor estético da fotografia: o encontro com os recortes. E que delícia é poder mostrar. E ver.
drop do dia: participarei, junto com pessoas estreladíssimas, de um evento maneiríssimo sobre newsletters brasileiras. Será em novembro e os detalhes vocês vêem aqui:
Um abraço e nos vemos na próxima edição,
paulamaria.
Acabei de ler a sua news do laboratório de revelação. Vim trazer um filme que ficou esquecido dentro da minha câmera hipster que resolvi resgatar da estante e comprar mais um filme pra voltar a ne aventurar na fotografia analógica. Achei muito oportuno o tema e lamentável que exista gente de tanto gabarito dando tão pouco valor à fotografia digital. Compartilho do seu interesse pela fotografia como um vislumbre do mundo interior de cada um, e acho incrível que o digital democratize o acesso à criação e ao compartilhamento desses registros.
E da mesma maneira as newsletters e os blogs são outra forma de compartilhar nossos olhares únicos e de conhecer os mundos interiores de outras pessoas. Fotografia e escrita aproximando pessoas.
Eu tive minha fase com lomografia. Coincidência: ultimamente tenho pensado muito nas lomos e a relação que eu tinha com a fotografia analógica no início da vida adulta. Também comecei a acompanhar o trabalho da Adelaide pelo vodcabarata há 55 anos atrás, me senti super próxima de vc agora hehehe