Os homens bons
Pessoas deveriam vir com avisos / mas é sempre um homem minúsculo, não importa qual seja sua altura. (paulamaria)

Um menino bom. Talvez você, que foi uma garota nos anos dois mil e é uma jovem senhora em dois mil e vinte já tenha ouvido isso sobre um cara que namorou. O menino meio quieto, tímido, risada discreta, trejeitos delicados, gosto musical e literário apaixonantes, beijos românticos e pouca destreza com intimidades. Ali, todo meio desajeitado, meio espertinho, povoando seus pensamentos de moça que viu pouco do mundo lá fora. De repente, tudo que você pensa envolve aquela figura. Ir ao cinema de mãos dadas parece o primeiro passo para conquistarem o mundo com o amor <complicado e perfeitinho> de vocês dois. Um menino bom. Ufa, era tudo que eu sempre quis.
Um conto do vigário que funciona desde que o mundo é mundo, quebrando jovens corações planeta afora. Mas quem dera que o coração quebrado fosse a única herança desses relacionamentos. O que pouca gente registra (e isso tem mudado, ufa!) são as marcas indeléveis que esses meninos, moços e homens vão escavando em nossas peles, como uma detalhada tatuagem, quase impossível de remover. Poderia dizer que tudo o que acontece fica em segredo, que a magia da captura rola apenas nos bastidores. E eu estaria mentindo, estaria desrespeitando minha própria história pois tanto na escuta clínica quanto no próprio arcabouço relacional, consigo listar inúmeras cenas públicas. O <menino bom> age também na frente de todos, que também seduzidos por sua aura inofensiva, permitem os mais desatinados abusos.
A cada <famoso> envolvido em acusações de relacionamentos abusivos, meu coração bombeia uma injeção de resignação: mais um. Sem novidades, o mundo segue seu curso. Anos atrás testemunhei um adulto ensinar ao sobrinho que meninas gostam <disso>: o gesto de segurar na genitália e sacudir, a criança de cinco anos a repetir o gesto e os adultos ao redor rindo e filmando. Recentemente ouvi uma avó contar, também rindo, que seu neto a chama de nomes <engraçadinhos>. Estes nomes são xingamentos. O neto os dirige à mãe e à avó - nunca para o pai. Verão passado, sentada na calçada de um bar, observei um grandalhão puxar o filho pelo braço e humilhar a criança com gritos e ameaças pois não queria lhe obedecer. Nos acessos de raiva de um parente próximo, fui ameaçada com dedos em riste e um corpo muito maior do que o meu lançado em minha direção, numa discussão presenciada por outros familiares. Repetidas vezes. Sem novidades, o mundo seguiu seu curso.
Tive relacionamentos com alguns <meninos bons>. Quando jovem, costumava ser muito otimista, muito mesmo. Doutrinada pelas cinematográficas <manic pixie dream girls>, segui à risca o papel que parecia me caber. Para quem não conhece o conceito, explico. São garotas que <não são como as outras garotas> e por suas características excêntricas, divertidas, misteriosas e complicadas constantemente aparecem nas narrativas para ajudarem o cara a se aventurar e se descobrir. Dificilmente tem desenvolvimento de personagem e muitas vezes somem ao final da história sem muitas explicações. O termo foi cunhado pelo crítico de cinema Nathan Rabin a respeito da personagem Claire Colburn em Tudo acontece em Elizabethtown (2005). Devo dizer que em 2005 eu tinha dezenove anos e Claire se tornou um dos meus alter egos preferidos do cinema. Moldando meu comportamento, as expectativas de relacionamento entravam no plano que não seguia como nos filmes. Mas quando não dava certo, pensava que ainda não tinha feito o bastante, mas que tinha melhorado aqueles caras que já eram <bons>, só precisavam de um <toque mágico>. Transformar a vida de alguém que amo em troca de sua felicidade parecia mesmo, tudo o que eu sempre quis.
O que se faz em matéria de sacrifício, humilhação, barganha e principalmente na dificuldade em enxergar os sinais evidentes de abuso relacional é assustador. Quando você passa por um trauma — que é diferente de um relacionamento que não deu certo — suas referências mudam. É como se a bússola interna quebrasse de um jeito difícil de colar os pedaços. Não tem como comprar outra, você precisa com muito cuidado, carinho e paciência, olhar para todos aqueles cacos e montar, do jeito que dá, a sua autorreferência. Os <homens bons> não passam por isso, nem mesmo os que são expostos na internet e que recebem, vá lá, alguma dose de hate. A gente sabe que o mundo segue seu curso e no fim das contas, quem é acusada de monetizar um trauma somos nós. Eles escrevem seis livros sobre suas próprias lutas, viram best-sellers e ganham prêmios, viagens, fama. Ai de nós querer fazer alguma coisa sobre isso, que pudesse ao menos cobrir os gastos com remédios, médicos e terapia. O menino bom sempre vence. Pelo menos na narrativa mainstream.
Acontece que a <manic pixie dream girl> também encontrou caminhos e narrativas próprias. Apesar de ser capturada do jeito mais errado possível, ser <só uma garota> ou <i’m just a girl> significou também para a minha geração correr atrás do seu, se virar com o que tem, refazer a rota, largar tudo para poder sobreviver. Jamais romantizarei trauma como motor de criatividade, quisera eu nunca ter vivido coisas horrendas e inesquecíveis, porque “o trauma não é uma história, é uma cicatriz” (obrigada pela frase certeira,
). É que não tendo jeito de visitar uma Laguna Inc. e apagar parte do que vivemos, resta acreditar que a vida também continua para nós, que a vida pode prestar, que lá fora algo bonito pode nos tocar sem doer novamente. De <meninos bons> me enchi e então pude largar aquela ideia idiota. Não tenho que salvar ninguém e muito menos me submeter àquilo que parece <ser o que mereço>. A vida pode ser extraordinária e os encontros devem se guiar pelas paixões alegres, que nos coloquem em movimento, juntos. Complicada e perfeitinha é a vida, que não é um roteiro de filme dos anos dois mil e pouco.Este texto pode se estender por um livro inteiro e assim deverá seguir seu curso. Volta e meia sou obrigada a pensar no tema, apenas nessa semana foram dois casos de relacionamentos abusivos que vieram à tona nas redes sociais*. Visitar minha cicatriz dói e também me lembra que estou viva e não estou mais lá. O bonito é perceber que não estar <lá> me permite falar <de lá> e assim encontrar com tantas outras mulheres e suas histórias e cuidar de nossas cicatrizes coletivamente. E também rir da audácia e da pequenez desses homens minúsculos, escondidos atrás de seus comportamentos vergonhosos e da total ausência de trabalho interno — sem falar da usual inexistência de desculpas. Por aqui, pego na mão do meu passado e lhe dou um carinho. Seis anos depois, estou forte o suficiente para rir, chorar e sobretudo escrever a minha história. Aguardem que um dia teremos livro.
*Neil Gaiman e alguém do mercado editorial brasileiro
Drops:
Se você é ou conhece mulher em situação de violência, conheça o Mapa do Acolhimento, um projeto de voluntariado (do qual fiz parte por cinco anos) que oferece orientação psicológica e jurídica gratuitamente
Para denúncias de violação de direitos humanos, disque 100. Para violência doméstica e familiar, disque 180. Ligações gratuitas em todo o território nacional.
Se você está em situação de violência e ainda não consegue denunciar mas gostaria de falar com alguém, considere ligar para o Centro de Valorização da Vida: 188, ligação gratuita em todo o território nacional
Menino Bom é o nome da primeira zine que vendi
Um texto bom sobre <manic pixie dream girl> (em inglês)
Virgínia Mordida é um romance da minha conterrânea Jeovanna Vieira sobre relacionamento abusivo e suas saídas
Um filme ótimo sobre o tema é A garota no trem, com Emily Blunt
A trilha sonora de Tudo Acontece em Elizabethtown é im-pe-cá-vel
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um abraço,
paulamaria.
Eu era obcecada por esse filme. Tinha o pôster colado na parede em frente à minha cama. Como eu não percebi que tenho tentado tanto ser a manic pixie dream girl todo esse tempo? Os homens é que deviam se dobrar pra tornar minha vida mais mágica depois dessa realização, mas acho que vou seguir sendo minha própria heroína.
Amo os teus textos, e esse foi uma paulada.