Quando se decide cumprir uma atividade com certa frequência, deve-se levar em conta as intermitências da vida, ter espaço para mudar a rota, recalcular os gastos, mudar de ideia. Caso contrário, o destino é certo: o fracasso. Acontece que, mesmo contando com o imprevisível, nunca se espera que as coisas possam degringolar ladeira abaixo. Fato é que, quando parece que já vimos ou previmos os piores cenários, que já imaginamos os vilões mais cruéis e os algozes mais caricatos, a surpresa no roteiro acontece e, mais uma vez repete-se: ‘mas não é possível!’ Talvez seja por isso que viver no Brasil dos anos 2020 esteja sendo um desafio à la No limite, sem edições ou cortes, sem tempo para reescrever.
Desde que decidi que essa newsletter seria semanal, como forma de exercitar constância e consistência na escrita, me sinto por vezes empurrada a escrever sobre os acontecimentos da última hora, e, por outras, sinto exatamente o contrário: uma impossibilidade na tradução em palavras sobre qualquer polêmica ou notícia. Isso se dá graças ao juízo que construí em anos de internet, repetindo o mesmo mantra muitas vezes ao dia: você não precisa omitir uma opinião sobre isso, o que também me deixa perdida quanto ao que esperam da minha produção, uma espécie de fomo.
Dentro do meu planejamento da news, não pretendia comentar de maneira direta sobre os absurdos políticos de nossos tempos. O último final de semana me colocou uma grande dúvida sobre essa decisão, pois que baita intermitência! Inicialmente, a carta de hoje seria uma conversa com o ótimo texto Ano que vem não vou emagrecer, da
- que vai ficar pra outro dia, porque dessa vez, mesmo sem saber como comentar sobre os ataques vis e terroristas à democracia, fui puxada para um papo pela . Ela me propôs comentar sobre negacionismo, sintomas, atrocidades e catástrofes. No texto dela, que você poderá conferir na próxima segunda feira, levarei um ponto de vista sociopsicológico, que é como conduzo meus estudos e minha clínica. Aqui, encontrei uma outra maneira da gente conversar sobre o assunto. Proponho este pequeno ensaio, sobre raízes, sementes e caminhos.Nascem demoradas e buscam espaço entre os dendritos. Precisam de água, mas não de luz. Espalham-se no escuro do mundo, lá onde depositamos os mortos, os rejeitos e o passado. Dinoussauros, ex-detentos, minha avó, casas demolidas, provas de matemática, tomates mofados: tudo isso as alimenta. Estrutura presente em vegetais do grupo das pteridófitas, gimnospermas e angiospermas, apresentam funções como fixação e armazenamento de nutrientes. A raiz existe no reino vegetal e dela emprestamos o sentido de origem. E, mesmo que uma planta não nasça de suas raízes, a figura de linguagem funciona como modos de voltar pra casa. Saber suas raízes é saber de onde se veio. Se levarmos a botânica à sério, a gramática não faz sentido, parece estar errada, porque a origem em grande parte do reino vegetal é a semente. E por que esquecemos das sementes?
A semente é ‘uma estrutura que serve de proteção para o embrião de uma planta, é formada por uma camada rígida (tegumento) e pelo endosperma que serve de fonte energética para que essa semente germine, se estabeleça e eventualmente cresça’. Ela é o começo da planta, a origem, o que permite o movimento da vida. Geralmente usamos sementes como metáforas de possibilidade, como se nelas morasse o segredo da vida, encapsulado e aguardando o rompimento com a inércia: o começo, o gérmen, a explosão. A semente é nosso big bang em looping.
Sowing the seeds of love (anything is possible)
Seeds of love (when you're sowing the seeds of love)
Sowing the seeds of love
Sowing the seeds of love (anything is possible)
Seeds of love (sowing the seeds of love)
Sowing the seeds - (Tears for fears)
Nas raízes podemos encontrar estruturas que se parecem com fios de cabelo, com pontas duplas, triplas, quádruplas. Mas as raízes se diferem dos fios de cabelo porque estes não se dissipam ou desfazem, são eternos. Cabelos duram uma eternidade, raízes apodrecem, explodem, se desfazem em mil pedaços. Os cabelos rolam pelos ares das cidades, entopem os ralos dos banheiros, enfeitam as múmias embalsamadas do Egito. Os cabelos das múmias evocam as raízes da humanidade, e mesmo murchas, desformes e feias, são resistentes e carregam o peso da história. Milênios nos separam e apesar disso, podemos olhar hoje para esses cabelos sem vida - ainda que perenes - e espiar pelas rachaduras na história, quase como entrar num buraco de minhoca e saltar no tempo. Como se fosse possível visitar um mundo que imaginamos, mas que contém também tudo aquilo do que jamais saberemos. Um buraco de minhoca que mora nas células de tecidos beges e ressecados, eternizados, olhando para sempre na mesma direção, através do vidro transparente da vitrine nos museus. E que pouco pode nos responder sobre as perguntas que eles mesmos se faziam.
Yo te llevo dentro, hasta la raíz
Y por más que crezca, vas a estar aquí
Aunque yo me oculte tras la montaña
Y encuentre un campo lleno de caña
No habrá manera, mi rayo de Luna
Que tú te vayas - (Natalia Lafourcade)
Arrancar o mal pela raiz, diz o ditado popular. Separar o joio do trigo, diz o ensinamento cristão. Sabedorias populares botânicas nos ajudando a transmitir lições de vida quando o trauma não é suficientemente explícito. Joio e trigo se misturaram no terreno dos sentimentos, na educação pela pedra, amor e violência se misturam como causa e consequência. É preciso não confundir correlação com causalidade, apesar do apelo. Eu já sabia da existência das múmias e talvez até que cabelos não se desfaziam, mas ninguém me ensinou a semear as boas sementes na estação correta. Aprendi, contudo, a cultuar as raízes, a não questioná-las, a retornar a elas sempre que possível, como se elas me definissem. Hoje me olho no espelho cobrando uma agricultora que não existe aqui dentro. Sinto que as sementes de trigo e joio se misturaram terra abaixo e suas raízes estão emboladas no terreno fértil e aberto do meu coração. Hoje sinto as raízes secas, que não mais se espalham, mas endureceram o solo. Se a raiz é a nossa origem, o que insiste em incomodar e aprofundar é o ressentimento, uma coisa sem vida e forma, mas se assemelha a uma planta trepadeira, que ao invés de crescer em busca da luz, segue em direção contrária, ao escuro e ao profundo da terra arrasada.
E retomo a pergunta que me fiz e sigo sem resposta: por que esquecemos das sementes?
Esse é um texto em andamento, que faz parte de um corpo longo e demorado de escrita… Ainda não sei se um livro de contos ou romance. Esse é o primeiro pedaço que mostro à alguém, achei que caberia aqui, depois de tudo o que assistimos. A dor do desfazimento não é inédita na nossa história, nem social, nem pessoal. Reconstruir é penoso, toca em pedaços de terra abalados, que podem desmoronar, tremer, abrir buracos. Porém, reconstruir é uma das características da nossa humanidade. Sigamos, sem anistia e com luta.
A eternidade nos escapa.
Nesses dias, em que soçobram no altar de nossa natureza profunda todas as crenças românticas, políticas, intelectuais, metafísicas e morais que os anos de instrução e educação tentaram imprimir em nós, a sociedade, campo territorial cruzado por grandes ondas hierárquicas, afunda no nada do Sentido. Acabam-se os ricos e os pobres, os pensadores, os pesquisadores, os gestores, os escravos, os gentis e os malvados, os criativos e os conscienciosos, os sindicalistas e os individualistas, os progressistas e os conservadores; não mais que hominídeos primitivos, e suas caretas e risos, seus comportamentos e enfeites, sua linguagem e seus códigos, inscritos na genética do primata médio, significam apenas isto: manter o próprio nível ou morrer.
Nesses dias, precisamos desesperadoramente da Arte. Aspiramos ardentemente a retomar nossa ilusão espiritual, desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda poesia e toda grandeza não sejam excluídas desse mundo. (p. 104, A Elegância do Ouriço, Muriel Barbery)
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um abraço,
paulamaria.
Fiquei matutando sobre essa dor do desfazimento. Reconstruir é penoso e necessário para a gente não sucumbir.
beijo, menina
Eu amei muito A Elegância do Ouriço - e acabei de ver no Kindle que marquei essa passagem... :)