Acabo de devorar duas mangas. Gosto do ato de comer mangas em silêncio e sem plateia. Sou acometida por algumas lembranças enquanto chupo o caroço, desperdiçando um pouco de sumo pelas beiradas da boca. Sei que meus olhos se arregalam e temo pelas minhas expressões faciais, então, me reservo o direito de comer mangas apenas quando estou sozinha. Sim, como mangas em público, como recusar o prazer suculento da fruta amarela e cheirosa? Mas, como com observadores apenas – e somente apenas – se elas já estiverem descascadas.
No quintal compartilhado com vovó Mariinha, havia uma alta mangueira de mangas espadas que perdia muitas muitas muitas folhas durante todo o ano e que se enchia de frutos nos últimos meses do ano. As folhas eram malditas por mim, amante de mangas. Varrer o quintal era uma das tarefas mais ingratas da infância, junto com carregar o andador do meu irmão e negar os convites para brincar com as vizinhas na rua da frente. No quintal, entre novembro e dezembro, acumulava-se o cheiro doce e podre das mangas que despencavam nas ventanias de quase verão em Vila Velha. Esse cheiro mora no fundo das minhas narinas, junto com a maresia e o perfume de patchouli de vovó. Morcegos, maritacas, formigas e pessoas: todos cobiçadores da alta mangueira e seus frutos sensuais. Todos adorávamos a época de mangas.
Manga é um dos meus sabores preferidos de picolé. Quando na faculdade, duas décadas longe e depois do quintal, também tinha mangas por perto, nas ainda mais altas mangueiras do campus universitário. Bem atrás do CEMUNI, entre a reitoria e o Cine Metrópolis, sombras frescas das queridas mangueiras enfeitadas de mangas a chacoalhar com os ventos vindos do manguezal. Certa feita, eu e uma então amiga – onde moram as ex-amizades? – pedimos ajuda aos jardineiros da Ufes para catar as mangas tão distantes, altas no pé. Com um puçá, derrubaram umas dúzias da fruta e cada uma de nós segurou o que deu abraçado ao corpo. Lavamos o melado e o pó de minério da casca na mangueira do estacionamento e, com dentes e desejo, abrimos a casca, a chupar em público, sem reservas ou temores. Almoçamos umas seis mangas cada uma e provavelmente depois fomos descansar da aventura no laboratório de informática, munido de ar-condicionado e computadores para logar no Orkut ou Fotolog. Era tempo de tardes longas, ainda não havia tanto pavor do Outro. A manga, a jovem e a comunhão pública eram atos humanos, banais.
Quando criança não havia Orkut nem Fotolog e nem ex-amiga. Havia o balanço. Esqueci de falar. Na mangueira do quintal tinha um balanço, feito pelo vovô Olympio com tábua, ferro e corda. Sinto a textura da ferrugem na madeira, sinto a aspereza das cordas na palma de cada pequena mão, sinto a madeira meio úmida ao sentar. Este balanço era a coisa mais radical da minha vida de criança, podia balançar de pé e quase podia tocar a parede chapiscada de tão alto e rápido que balançava. Eu, aquela criança medrosa e introspectiva, me tornava uma garota radical e aventureira no balanço da mangueira. Naquele quintal, ao balançar e me esbaldar de mangas e de aventuras, eu não sabia nada sobre o futuro, sobre vergonha, sobre perdas. A vida parecia eterna. Mesmo quando catava as folhas caídas ou as mangas podres incomíveis, eu sabia que no ano seguinte, na mesma época e no mesmo lugar, tudo ia acontecer de novo e de novo e de novo. Mesmo na universidade, a vida ainda parecia eterna. Até que as coisas ao redor começaram a apodrecer, sem o doce ocre cheiro de manga, sem a aventura veloz do balançar.
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um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Fiquei lembrando das texturas do balanço que tinha na árvore da casa dos meus avós também. Deu uma saudade tão boa ❤️
Paula Maria, a poetisa.
Que carta linda, amora minha. (sim, amoras ainda são as minhas preferidas, dia desses te conto). Mas ó, vou te dizer aqui dos olhos de quem vê a vida com o fim no horizonte (perdão, eu sei que dói aí, mas é um horizonte real, sabemos): a vida é eterna, sim. Eterna em cada instante, em cada momento vivido, em cada segundo. Quem foi não volta, mas segue aqui conosco, dentro de nós. Cabe a cada um/a/e dar vida às memórias, fazer valer a vida que já passou.
E lembra sempre, minha poeta: TE AMO.