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Meu ofício de psicóloga me ensinou coisas importantes nesses 20 anos de formação. A principal ferramenta psi é a ‘escuta qualificada’, isto é: receber as pessoas e suas histórias no ambiente terapêutico, que se difere de outros espaços e outros tempos. Não é melhor nem pior, é diferente. A escuta qualificada que exercito há duas décadas não antecipou todas as atrocidades e belezas que eu receberia nas histórias que acompanho, mas me deu a habilidade de acolher sem desmoronar. Quando me perguntam o que faço com tudo isso, costumo dizer que eu trabalho, seja junto da pessoa atendida, seja comigo mesma. Não é uma profissão simples, apesar da romantização da ‘terapia em dia’ rede social afora. Inúmeras vezes penso em encerrar este capítulo, fechar o ciclo ou sei lá, apenas largar. Ainda não sinto que é o momento, bem assim mesmo, meio místico, meio confiando na minha intuição. Será?
Nessa semana tive uma conversa difícil com um amigo de longa data. Nos conhecemos na adolescência e desde então vivemos encontros e desencontros, mas nunca deixei de nutrir uma genuína admiração e carinho por sua existência. No contexto informal e, por que não, superficial das redes sociais, nos seguimos e nos acompanhamos. Dias atrás, adentramos caminhos profundos e escusos dessa relação. Numa troca de vídeos curtos – uma nova forma de comunicação entre amigos, como os memes e figurinhas de Whatsapp – lanço uma pergunta de tom interventivo, mas não sem antes pedir licença e a mea culpa do ‘não precisa responder se não quiser’. A intimidade antiga faz com que ele não se assuste e redija um textão, e eu, do outro lado da tela, receba sua narrativa com certa distância emocional, pelo menos naquela hora. Meu corpo está treinado para isso, ele organiza cada célula dos olhos, boca, nariz, ouvido, dedos, coluna, pés: receba. Você perguntou, aguarde e receba. Fazer uma pergunta é abrir uma porteira desconhecida, é dar às mãos para a confiança e caminhar no incógnito, é dançar um ritmo novo sem saber a próxima música. Minha pele de terapeuta é inescapável – aqui nesta relação estou por inteiro e, ainda que não seja sua analista, um pouco dela emergirá.
Nossa conversa não foi de modo algum um atendimento psicológico. Conversas entre amigos têm gosto e cheiro de cuidado e se diferem radicalmente da terapia no que tange à intenção. Sei que a palavra ‘terapêutico’ é usada como modo de referência ao que nos faz bem e que participa das nossas ações de cuidado. E também sei o quão perigoso é para mim, que, treinada como uma profissional da saúde, tendo a acionar essa habilidade de escuta. Não é raro ser cobrada por isso nas relações não profissionais e a frase ‘mas você é psicóloga, deveria ______’ aparece com muito mais frequência do que eu consigo digerir. O peso do meu ofício por vezes oblitera o resto das coisas que me compõem. De certo modo, me sinto um mosaico de histórias – minhas e alheias – e o carregá-las parece minha sina, meu destino, minha fortuna. Raríssimos são os dias em que não lembre de alguém que guardo com carinho e segure, com muito empenho, a vontade de enviar uma mensagem: ‘e aí, como você está?’. Sinto responsabilidade pelas histórias que me atravessam e as lembranças repentinas sobre alguém rasgam os meus dias como uma flecha, como um lembrete: ninguém merece se sentir só.
Acho que tenho medo. Medo de que se não for eu, talvez não seja ninguém. Eu sei, eu sei, parece uma síndrome de salvadora, mas, por outro lado, ouvir o zunido dessa flecha se provou importante numa dúzia ou mais de situações. Viver é um troço complicado e, para muita gente – se pensarmos em escala global, para quase todo mundo —, é escapar de morrer. Estou à salvo da maioria das mazelas sociais que acometem seres humanos em 2024, mas não tenho como saber se aqueles que guardo dentro do peito também estão. Nessa conversa difícil com meu amigo, descobrimos períodos complicados de nossas vidas, onde a existência esteve sustentada por um fio invisível. Talvez estivéssemos ligados a uma dessas flechas, que viajam pelo tempo e espaço cortando os dias de alguém que nos ama. Acredito que sobrevivi porque alguém ouviu meu chamado, e mesmo sem a habilidade de um terapeuta, também não desmoronou e pôde suportar o meu desfazimento. Tenho medo porque minha profissão permite que eu conheça lugares profundos e escusos em que caminhamos, na maioria das vezes, sozinhos. E quando o medo começa a se espalhar em mim, eu leio.
Dois livros me acompanharam essa semana: ‘O amante’ de Marguerite Duras e ‘Ru’ de Kim Thúy. Ambos possuem relatos autobiográficos e se passam no Vietnã em guerra, em épocas distintas. A infância e adolescência de Duras têm como cenário o Vietnã então Indochina, colônia francesa no começo do século XX. Para Thúy, sua infância acontece no pós Segunda Guerra Mundial, então o pano de fundo era o Vietnã em conflito norte versus sul. Duras narra, de maneira errática e sonâmbula, suas relações familiares – mãe em sofrimento mental, irmão abusivo, irmão a proteger. Ora a escritora é a personagem, está falando de sua vida: escuto atenta aquela primeira pessoa; ora é uma terceira pessoa que observa aquela menina que tentava compreender o seu redor: desespero, ausências, silêncios, umidade, corpo e encontros.
A história da minha vida não existe. Ela não existe. Nunca há um centro. Nem caminho, nem linha. […] Aqui falo dos períodos encobertos dessa mesma juventude, de certos fatos, certos sentimentos, certos acontecimentos que enterrei. […] Escrever, agora, é muitas vezes como se não fosse mais nada. Às vezes sei disto: que a partir do momento em que não é mais, todas as coisas confundidas, ir ao sabor da vaidade e do vento, escrever não é nada.
(O amante, Marguerite Duras)
Duras entende que precisa se afastar para sobreviver, mas o afastamento é primeiramente interno: ela precisa escrever uma história que não seja como a de sua mãe, que a assombra desde cedo. O destino é ela quem desenha e isso comparece de maneira evidente em sua escrita. Ficção ou não, acredito fielmente em suas palavras, acredito naquela menina que parece ter o controle de tudo – porque quem me conta essa história é a mulher que sobreviveu às escolhas daquela jovem, em outros mares, outros trens. Após se afastar emocionalmente, algo que se observa na mudança de perspectiva da menina nos encontros com o amante, Duras percebe que precisa ir embora. Abandona-o e vai para a França, onde escreve até morrer, em 1996.
No livro de Thúy, escapar é verbo coletivo e atiram-se ao mar a pequena menina de dez anos junto com muitos de seus familiares, e outras centenas de pessoas – muitas ficam pelo caminho, antes mesmo de terem a chance de subir num barco pro outro lado do Pacífico. Thúy, ao contrário de Duras, viveu uma infância abastada e assistiu à derrocada de sua família, sua cidade e do país nos mínimos detalhes. Na guerra, tudo se desmorona. Soldados-inspetores que haviam despistado os estadunidenses se abrigavam (invadiam) as casas de seus conterrâneos. Numa cena do livro, o pai de Kim ouve música às escondidas (o governo havia proibido). Os soldados, habitando outra parte da casa, se juntam à família e derramam lágrimas ao som da vitrola (quem dera saber o que ouviam). Logo em seguida, queimam os discos, livros, filmes e tudo mais que fosse mundano e não exaltasse a importância do combate nacionalista.
Kim e sua família sobrevivem à travessia e se estabelecem no Canadá e Estados Unidos. As cenas duma infância imigrante são de uma crueza dolorida. Sem léxico para compreender o mundo novo e tão recentemente marcada pela violência, degradação e usurpação dos direitos humanos, Kim sobrevive graças a centenas de gestos de cuidado pelo caminho – e ela os reconhece e nos mostra. Latas de sopa, bancos de madeira, diamantes incrustados em dentaduras, catadoras de arroz, palavras que distraem do cheiro de excremento: nada é esquecido, tudo importa. Kim mora no Canadá e escreve.
Se uma expressão de afeto pode ser compreendida às vezes como ofensa, talvez o gesto de amar não seja universal: ele também deve ser traduzido de uma língua a outra, deve ser aprendido. No caso do vietnamita, é possível classificar, quantificar o gesto de amar com palavras específicas: amar por prazer (thích), amar sem estar apaixonado (thu’o’ng), amar amorosamente (yêu), amar com ímpeto (mê), amar cegamente (mù quáng), amar por gratidão (tinh nghia). É, portanto, impossível amar pura e simplesmente, amar sem a cabeça. (Ru, Kim Thúy)
Aprendi nesse caldo vietnamita da literatura que a morte não só é inescapável: a vida também o é. Rainer Maria Rilke tem uma frase que deverá ser meu epitáfio: Deixe tudo acontecer a você / Beleza e terror / Apenas continue / Nenhum sentimento é final. Passo a questionar meu desejo de escutar com atenção como um desejo de viver sem estar desapercebida: quero tudo, intensamente. Os detalhes do cotidiano não são mero acaso, são personagens e cenário dessa vida que é só minha. Eu preciso estar atenta, preciso observar, ouvir, registrar, escrever. Experimentar diferentes formas de amar, com o corpo e com a cabeça.
Esta newsletter é revisada pela jornalista e poeta Luiza Leite Ferreira
Na próxima segunda (25/03) teremos o terceiro encontro do Clube do Livro Quem Quer Ler, com As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez. Informações e inscrições aqui.
A frase título dessa newsletter é parte de um poema e virou um lambe produzido pelo Coletivo Papel Mulher. Se quiser imprimir e espalhar por aí, baixe aqui!
Ru, publicado no Brasil pela Editora Ayiné, está em promoção no site e também tem adaptação cinematográfica (ainda não assisti). O livro passou na frente da minha pilha depois do texto da
.Essa newsletter é parceira da Editora Fósforo e Círculo de Poemas em 2024. Tem cupom de desconto na assinatura do Círculo, use aqui!
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Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
duas coisas: gostei mto de ler como uma psicóloga se sente. tinha essa curiosidade hahaha
segunda: eu escrevi na minha news que nunca tinha lido uma autora vietnamita mas Duras é uma das minhas escritoras favoritas hahaha que vergonha. acho que internalizei a Duras francesa. ah meu deus.
lindo texto!
vivemos um tempo em que a gente ouve muito, mas escuta pouco.