Quando eu era pequena
When I was little
Cuando yo era pequeña
Quand j’étais petite
Palavra é coisa frágil. Penso nisso muitas e muitas vezes, afinal de contas meus dois ofícios – escritora e psicóloga – fazem dela base, instrumento, meio, finalidade. O enlutamento me faz perder as palavras, a anestesia do assombramento e a necessidade do modo funcional me afastam do usual contemplamento e intimidade com o léxico. Pensamentos repetitivos e prosaicos me invadem todas as noites, na tentativa de me convencer da inacreditável realidade: ela não está mais aqui. Não quero fazer deste texto sobre mim e nem sobre ela. Escrever é, quase sempre, uma tentativa de tradução, por isso comecei essa edição com a mesma frase expressa em diferentes línguas (nas quais tenho algum conhecimento). Ontem à noite, apesar dos pensamentos repetitivos, me peguei pensando nesse curto ‘aforismo’, tão cotidiano e tão afetivo. Nessa newsletter, costumo contar sobre coisas do meu passado e deu até curiosidade de pesquisar exatamente essa frase: quando eu era pequena. Me parece que ela introduz assuntos deveras importantes – afinal de contas, eu, depois de quase três décadas, ainda lembro disso que disserto sobre. Palavra e memória são coisas frágeis, e quase sempre, andam juntas tentando se apoiar.
É curioso perceber quantas coisas conheço, mas não sei nomear, embora a longo prazo confirme que não tem nome. (Laura Wittner)
Ao longo da estrada da psicoterapia, acolhi uma dezena de brasileiras expatriadas. Países diferentes, motivos diferentes de deslocamento, mas uma lista de sentimentos em comum: a distância do que se chama de ‘casa’; a saudade da intimidade ligeira; o tédio da solidão; a ‘ficha’ caindo quando acaba o período inicial que parece férias; o gosto meio sem graça de frutas e verduras... Mas eu diria que é a transformação da água em vinho – ou seja, do pensamento em palavra numa língua nova – que é o principal elo entre essas pessoas. Uma corrente invisível e forte, esse nosso idioma, que desenhou nossos sentimentos, nossa visão de mundo, nossa memória. É preciso reinventar o uso das palavras, repensar aquilo que sempre pensou, é, como já me disseram, “emburrecer” em duas línguas ao mesmo tempo: traduzir é também perder. E digo isso tirando a famigerada <saudade> do jogo. Existe um vácuo inatravessável na palavra, um vácuo que nos captura e nos deixa em suspensão. Laura Wittner, em Viver e traduzir (Ed. Bazar do Tempo, 2023), chama esses obstáculos de <pedras recorrentes>, <velhos fantasmas no meio do caminho>.
Quando abri este livro, deveria ter desconfiado que não seriam apenas notas sobre a vida de uma tradutora. A dedicatória é a seu pai, Mario. Simples assim: Para Mario, meu pai. Não precisamos de muitas palavras para entender homenagens. Em algumas delas, o peso é tácito. Não sei se pelo ofício, parece que uma pitada de divinação me acomete… Na página 14, a quarta página do texto de Laura, temos um aforismo reto como uma flecha: É possível continuar traduzindo enquanto se chora. Fazia alguns dias do pior dia do ano e resolvi abrir exatamente este livro. Eu estava no avião, em silêncio, com livro e lápis em riste. Chorei um pouco, bebi um guaraná e risquei com alguma força, a palavra <traduzindo> desta frase. É possível continuar enquanto se chora. O texto segue e duas páginas depois encontro: Traduzir é ficar colada nas costas de alguém. Avanço a leitura e encontro outras coincidências e sinais – não é isso que buscamos, o sentido quando suspensos? Algo me gruda nessas páginas. Enlutar também é traduzir um novo idioma.
Laura é argentina e traduz para o espanhol textos em inglês, poesia e prosa. Ao longo de Viver e traduzir, saboreamos o jogo entre suas notações sobre o ofício da tradutora, a conversa das tradutoras brasileiras Maria Cecilia Brandi e Paloma Vidal sobre as notas de Laura e catamos com a ponta dos dedos, como um granulado que cai do brigadeiro, pedaços dos originais no inglês. Outro sinal sobre mim aparece na página 24: (…) traduzindo Stroud com Shira, descobri que em inglês ‘escada caracol’ se diz ‘escada espiral’, e ela descobriu que em espanhol ‘spiral staircase’ se diz ‘snail staircase’, e as duas rimos. Ri junto ao final do parágrafo, desenhei três corações em cima deste pedaço do texto e circulei a palavra caracol. Como a própria autora registra na página 67: (…) quem sou eu sem meus rituais?.
Um dos projetos desejados na carreira de Laura era traduzir os Contos Completos de Lydia Davis. Juntou forças, organizou coragem e solicitou à autora, mas naquele momento, a tradução havia sido encomendada a outra pessoa, semanas antes. Dez anos depois, enquanto lia um compilado de ensaios de Lydia, Laura recebe uma oferta para a tradução deste material. Não conto o que aconteceu, deixo para você essa lacuna – que pode ser preenchida com o que quiser inventar. Por fim, retorno algumas páginas e na 47 encontro: Traduzir é se esquivar. Enquanto me esquivo das dores do absurdo, arrisco uma tradução.
Fábula do dogue alemão - Laura Wittner
Eu falei por falar: eu queria
ter um dogue alemão, porque na rua
ficaríamos magníficos.
Ele do meu lado, um namorado imponente,
e eu despreocupada, papeando.
E então me disse: que bobagem,
que ideia de jerico.
Quem banca um dogue alemão?
É grande, bobo, gasta muito, blablablá.
Se alguém fala assim contigo, pensei,
não presta. Não sabe sacar
seus flertes. Largue mão
dessa fantasia salvadora.
Fuja dessa pessoa. E fui embora.
Drops:
O primeiro livro da Laura Wittner que li, Tradução da estrada, veio na dupla da assinatura do Círculo de Poemas em julho/2023. A editora é parceira dessa newsletter e assinando semestral ou anualmente, você tem 15% de desconto com o cupom CARTAS15;
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, que disponibilizou cupom de desconto para compras no site PARC15 - deixo três dicas do catálogo: Na intimidade do silêncio de Cíntia Brasileiro, antes que o fruto caia do e Jiboia da Cecília Garcia;20/05 → remarcado o encontro de Abril, com o Amores Recreativos da
e o encontro de Maio é dia 27/05 → Na intimidade do silêncio da Cíntia Brasileiro (aproveite o cupom!);Montei uma rifa solidária para o RS, todas as informações no post do Instagram abaixo. Deixo também meu MUITO OBRIGADA a todo mundo que colou no Aulão de Escrita sábado passado. Foi demais <3
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Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
além de frágeis, palavras podem ser muito temperamentais. e acabar dizendo o que não queríamos que elas dissessem.
Traduzir é na própria pele costurar, a partir de retalhos do que já fomos, uma nova identidade.