O gosto do caqui
Sentir vencer / Reconstruir / E caminhar pro que virá. (Re-aprender a andar, Dead Fish)
Antes de começar, um pedido: elaborei um censo para entender melhor quem me lê por aqui. A participação é anônima e sua ajuda vale mais que ouro. É rapidinho, nesse link. Agradeço desde já! ♥
Minha mãe conta que eu amava comer caqui na infância. Minha irmã concorda e diz se lembrar de me ver sentada no quintal de nossos avós, me lambuzando com a fruta molenga – textura que ela até hoje abomina em comidas. É impossível comer caqui sem se lambuzar, pelo menos quando se é criança. Deve ser por isso que eu comia no quintal, caso me caísse no chão ou nas pernas, era só usar a tradicional mangueira enrolada debaixo do chuveirão e pronto, limpa. Acontece que faz umas boas décadas que não como mais caqui, aquela paixão toda pelo tomate doce e molengo foi embora. Quando afirmo isso, por vezes sou interpelada pela minha família: mas você comia de babar… Mas você amava! Errr… Não amo mais. Nossos gostos mudam, a gente muda – muitas vezes sem nem saber como ou porquê.
Parece natural tomar certas decisões durante a vida. Ou pelo menos parecia natural até uns vinte anos atrás. Para a paulamaria no começo dos anos 2000, era inevitável seguir o caminho vestibular-faculdade-casamento-filhos. Parecia mesmo que aquele era o meu sonho e a minha vontade, ainda que entendesse que outros caminhos eram possíveis. Tenho tias, primas e primos que não se casaram ou até mesmo que se casaram mais de uma vez ou não tiveram filhos. Parentes que mudaram de profissão depois de anos de carreira e também aqueles que vivem se reinventando por imposição da sobrevivência no capitalismo selvagem. Eu olhava pra tudo isso com distância porque o natural era seguir aquela estrada que já parecia pavimentada, eu só precisava conseguir chegar em cada uma das paragens. Cresci entendendo que ser obediente e causar poucos problemas para meus pais era importantíssimo para o sucesso neste caminho. Então, cumpri as metas que estabeleci para meu futuro. Eu não estava errada, nem estava certa. Acontece que depois de cumprir tudo isso, eu mudei.
Minha primeira formação profissional é em psicologia. Há quatorze anos sou psicóloga, tendo passado por uma gama razoável de funções e tipos de trabalho. Já fui funcionária temporária em empresa privada, já fui funcionária pública e há oito anos sou autônoma. Nessa ramificação de práticas psis, ouvi e vivi tantas vidas que não saberia descrever estes atravessamentos todos. Falta palavra, o que para uma psicóloga e também escritora, parece piada de mal gosto. Desde a formação psi, que comecei na década retrasada, mudei intensamente. Diria que grande parte dessas mudanças se deram à minha revelia, que vieram como tsunamis ou furacões que eram impossíveis de evitar. Eu tive que recalibrar minhas referências e inclusive, re-aprender a andar. Ver a psicologia hoje nas redes sociais me assusta um tanto, confesso. Não acredito que seja uma formação fácil e muito menos uma profissão cosmética: não há versão melhor de nós mesmos, esqueça. A vida é dura, somos pessoas difíceis, incongruentes e paradoxais. A boa notícia é que somos, além disso, mutáveis por excelência.
No início de 2023 eu passei novamente no vestibular. Exatamente vinte anos depois da primeira vez, fui aprovada em outro processo seletivo e, sem vergonha alguma de assumir para vocês: tive muito medo. Tive medo de contar para familiares, amigos e também para desconhecidos que me acompanham em rede social. Tive medo e vergonha de mostrar essa parte de mim que anunciava uma mudança. Diferente da adolescente que encarava a estrada com coragem e determinação, me vi acanhada e frágil, com receio do julgamento alheio e duvidando dessa nova escolha. A essa altura, eu posso mudar? Justificar pro mundo o “recalculando a rota” do gps pessoal é muito cruel, agora depois de um ano eu sei. Nem tão fundo assim, eu continuo uma garota muito obediente que não quer causar problemas, que limpa os rastros de suas bagunças e que empilha pratinhos sem pedir ajuda – enquanto desce a ladeira de patins, sem freios. Passar num vestibular concorrido, poder cursar a graduação que sempre sonhei… Nada disso era maior do que o medo de me expor diante de uma nova escolha. Se o caqui ainda causa espanto, eu posso mesmo ser outra coisa?
Não foi agora que o desejo de estudar Letras começou. Mas seria um problema se tivesse começado ontem? Acredito que para gostar de algo, basta estar atenta. Quando estou disponível emocionalmente, a chance do encantamento é quase garantida. Em dias de bom humor e bons hormônios, até os perrengues são romantizáveis – tudo vira história. Cursar Letras, no entanto, é amor antigo, é uma das paixões insuperadas da juventude. Quando vi meu nome na lista da Fuvest, me enchi de alegria e também de frio na barriga, como recebesse um convite para um encontro daquele crush tão antigo. Comprei material escolar novo, me sentindo um pouco ridícula e sem idade pra isso. Nas primeiras semanas de aula, não conseguia interagir direito com as colegas e usava maquiagem todos os dias, a fim de esconder as olheiras e não entregar nossa evidente diferença de idade. Para quem não me conhece, eu não uso maquiagem no dia a dia, nem mesmo para trabalhar. Eu estava sendo alguém que não sou, com medo daquilo que aparecia em minha frente: uma desconhecida paulamaria, uma pessoa em mudança, mais uma vez. Nada mais natural. Nada mais espantoso.
Cursar Letras, escrever dois livros, esta newsletter e tantas outras coisas que fiz nos últimos anos me aproximaram muito de uma versão possível dos meus sonhos de garota. Outro dia, no instagram, me perguntaram se “agora eu só vou falar de livros” porque gostavam mais de “como eu era antes”. Essa é uma pergunta difícil de responder, mais pela segunda parte do como eu era antes. Talvez amanhã eu desista de falar sobre livros, sei lá, quem sabe? O que tenho certeza é que definitivamente eu não serei como era antes. E isso não é porque decidi fazer um novo vestibular e aprender uma nova profissão. Todos os dias faço pequenas escolhas que modificam quem eu sou, logo, mudam também quem eu serei no futuro. Talvez esse seja o natural da vida, escolher miudezas que impactam e transformam, cotidianamente, esse “todo” que chamamos de “eu”. Talvez o nosso espanto devesse ser com o que não muda, com o que não envelhece, com o que não se permite. Gosto da possibilidade de experimentar, de tentar de novo, de desistir. Se achar caquis no hortifruti, quem sabe não compro na próxima vez?
Leia também:
Drops:
Dia 26/02 teremos o segundo encontro do Clube do Livro Quem Quer Ler, com Água Funda, de Ruth Guimarães. A participação é gratuita e as informações estão aqui.
Se quiser comprar meus livros, mande e-mail para oi.pmescreve@gmail.com
Vai de boas, um texto lindo do
Esta newsletter é revisada pela jornalista e poeta Luiza Leite Ferreira
Se gosta do que escrevo:
apoie continuamente através dessa plataforma
presenteie com um pix em oi.pmescreve@gmail.com
espalhe a palavra da news para sua rede
Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Eu estava com saudades dos seus textos, daí fui ver e depois do Acidente Fatídico de me Desinscrever de Todas as Newsletters eu não tinha me inscrito de novo??? Enfim. Bom estar aqui de novo, eu nunca mais dei uma chance para caqui depois de morder um achando que era um tomate (eu adoro tomate, eu queria um tomate). Eu estou ciente de que talvez se eu tentar de novo, dessa vez sem a traição, talvez eu goste. Ainda não tive coragem.
Desejando muito sucesso pra voce nessa nova fase de estudos! parabens pela conquista!