Virginia Woolf tinha uma saúde debilitada, passava longos períodos em repouso e essa condição a incomodava, porque pelo visto, ela gostava mesmo era de sassaricar. Sabemos que Manuel Bandeira teve tuberculose, mas ao invés de se prostrar, transformou sua doença em poesia. O médico mais querido do Brasil, Drauzio Varella, além de escrever sobre sua longa jornada na saúde pública, também é conhecido pela defesa do exercício físico e por ser corredor, prática que iniciou depois dos cinquenta anos. A velejadora Tamara Klink enfrenta ventos e marés com braços a puxar vela – e também com estes, escreve. Haruki Murakami, o mais famoso e obcecado escritor japonês na atualidade, corre todos os dias e se orgulha de <jamais ter andado>.
Em 2012, comecei meus estudos no mestrado em Psicologia Institucional. Fiquei muito feliz com o ingresso no programa, mas para poder realizar esse sonho, a vida me presenteou com uma demissão do suado trabalho que eu tinha conseguido só três meses antes. Infelizmente <pesquisadora> não é emprego no Brasil – pelo menos não para a maioria das pessoas que pesquisa – e o fato de ficar dois anos e meio sem carteira assinada me deixou ansiosa. As jornadas de trabalho de uma pesquisadora são intensas e a relação institucional com a universidade não é lá das coisas mais saudáveis que se pode experimentar… Então, num dado momento, minha saúde gritou e precisei ser metódica também quanto ao autocuidado, e escolhi a corrida e a yoga como prevenção e tratamento.
Naquele momento, a corrida veio cem por cento amadora. Eu literalmente só tinha um tênis, um ipod e nenhum sonho: descer no final das tardes para encarar o calçadão de Vila Velha era uma questão de vida – ou eu sucumbiria aos picos de estresse causados pela pressão acadêmica. Por meia hora, percorria três ou quatro quilômetros, olhando o entardecer na praia ao som de ready to start do Arcade Fire. Um looping feito durante dois anos e meio, que expandiu minha caixa torácica, me fez respirar melhor, ter menos dores e menos pensamentos intrusivos. Na yoga não era diferente. Engana-se quem acha que a prática é <relaxante>. Claro que a postura do cadáver é a minha preferida e entrar em transe de meditação guiada é tudo de bom, mas… Tirando isso, quero ver você repetir a série de saudações ao sol sem pedir arrego. Yoga é concentração, é saber de músculos que você nem conhecia, é colocar o seu corpo no eixo: uau, tenho uma coluna vertebral!
, jornalista por trás do perfil Sutilezas Atômicas no instagram, tem usado um bordão que é uma baita poesia: corpo forte, palavra bruta. Verdade verdadeira!No ano passado decidi voltar a correr, depois de quase um ano <só> na musculação. Incentivada pelo meu companheiro e amigos, fiz minha primeira prova de rua em dezembro, os primeiros cinco quilômetros! Foi emocionante, estava comemorando uma dúzia de coisas – a nova graduação, o segundo livro, os cinco anos da melhor decisão da vida. Passar pelo portal na largada e na chegada me trouxe lágrimas sinceras e um coração transbordante de alegria. Recomendo demais a sensação. Desde então, venho ruminando a ideia de convidar pessoas que escrevem e se exercitam para uma edição da newsletter – esta de hoje. A seguir, elas respondem: Qual a relação entre os exercícios do corpo e da palavra?
da queridíssima TTMT, dá aulas de newsletter e escreve com afinco todos os dias. Para ela, exercitar o corpo e a palavra “envolvem dedicação e disciplina” e pratica ambas na companhia da solitude:Eu gosto de fazer coisas sozinha, então escolhi musculação como minha prática, assim posso treinar na hora que quiser-puder. Acordo muito cedo, mas nem sempre treino de manhã, depende de como meu dia acontece — às vezes dá vontade de escrever cedo, às vezes tem coisa e trabalho pra resolver, e deixo pra ir na academia mais tarde. Uso um app pago para monitorar meus treinos e pago uma academia de bairro baratinha, pra mim funciona bem desse jeito. Como a escrita, a musculação é algo meu comigo mesma, um compromisso que assumo porque quero, uma escolha. E também como a escrita, é algo em que melhoro a cada dia. E, de novo, tanto a escrita quanto o exercício físico são desenvolvimentos lentos, uma coisa que acontece aos poucos. Se você decide começar a treinar e sai levantando peso todo dia, ou tenta correr 20km de cara, a chance é que não vai rolar, você vai se machucar e parar. Com escrever é a mesma coisa. Ninguém escreve Guerra & Paz (não que eu esteja tentando, ok?) num tiro só. É preciso paciência, muita paciência. Mas o único jeito de se tornar bom em algo é fazendo, né? Então eu insisto.
Insistência e solitude também aparecem na prática do
, jornalista e escritor, colunista do portal UOL com a ótima Página Cinco. Apesar de ser apaixonado por futebol (infelizmente são paulino) e bater uma bola regularmente, é na corrida de rua que ele se organiza. Para nossa sorte, Rodrigo me responde logo após um encontro esportivo-literário:Escrevo logo depois de dar uma volta de bicicleta com um escritor. Ele me falava sobre a dedicação que a escrita de um romance exige. Falou, inclusive, da questão do corpo, do quanto compreender a forma como o próprio corpo funciona em determinados momentos do dia é importante para saber o melhor momento de editar ou revisar, por exemplo. Trabalho com textos bem mais sucintos que um romance, então a relação por aqui entre o exercício físico e a palavra se dá de maneira diferente. Jogo futebol e vôlei, corro e faço musculação apenas para que os músculos aguentem o tranco das outras atividades. Estar numa boa fase com o esporte ajuda em todos os outros aspectos da vida, melhora a disposição, a força, o humor.
É a corrida que tem uma relação mais direta com o trabalho. Corro em ruas movimentadas, por onde às vezes temos notícias de assaltos. Jamais uso fones de ouvido. O celular fica em casa. O que tenho são alguns quilômetros (5, 8, 10, 15, 18, depende do dia e da fase) de papo comigo mesmo. É um momento precioso para me acertar com as ideias. Incontáveis vezes saí de casa com um texto mal resolvido, uma impressão ou vontade a ser lapidada, um mapa para algo mais complexo a ser desenhado e encontrei bons caminhos ou soluções no meio da corrida, conversando, discutindo, às vezes brigando comigo mesmo entre um quilômetro e outro. Não corro para isso, mas não deixa de ser uma boa forma de edição. Edição tanto de textos que carecem de soluções melhores para determinados trechos quanto de ideias que precisam ser melhor elaboradas.
O encontro silencioso com as palavras também é ressaltado por
, que encontra nas águas – nas piscinas ou mares – a expansão de si e de sua escrita. Priscila escreve a newsletter Mulheres Falam, que acabou de migrar para o Substack. Apaixonada pela escrita feita por mulheres e pela natação, a cada edição temos o convite de mergulhar junto a ela: praticar o movimento, em meio à silêncios e palavras.Em muitos sentidos, o exercício é a ausência da palavra. O hiperfoco na execução dos movimentos esvazia a cabeça de qualquer pensamento possível. No caso da natação, estou literalmente imersa. Respirando e me movendo em outro meio e prestando atenção em cada mínimo detalhe de cada movimento do meu corpo. Também por isso, o exercício pode ser um mar de palavras. Desfilando continuamente pela nossa cabeça. Ao mesmo tempo ordenadas, uma de cada vez na mesma direção, mas também sobrepostas e aceleradas, se atropelando entre os 25 metros que separam uma borda da piscina e outra.
Meu tronco está rotando o suficiente? Estou finalizando bem a braçada e fazendo força até o fim? O cotovelo está alto? O quadril está na linha da água? As pernas também? Estou batendo as pernas a partir do quadril ou estou deixando elas pedalarem? Os pés estão esticados? A cabeça está na linha da água também? O apoio da braçada está firme ou começou a cair? Estou usando minhas escápulas? Posição de streamline nas saídas de borda, não respira no primeiro ciclo, pode aumentar a frequência mas não deixa encurtar a braçada, pulso firme, antebraço firme, não deixa cair o apoio, não levanta demais a cabeça, olha a rotação, solta bem esse ar, puxa com consciência, controla a respiração, não é o pulmão que manda: é a cabeça.
E haja fôlego.
O mesmo fôlego que nos pede a escrita. Os paralelos entre os ritmos de nado e os ritmos de texto sempre foram evidentes pra mim desde que comecei a nadar. Os textos rápidos, fluxos de consciência, com pouca pontuação e palavras que correm à medida que escrevemos-lemos, como nas séries curtas e rápidas. Os textos mais pausados, ainda que contínuos, que nos levam sem pressa por vários parágrafos ou páginas, como nas longas distâncias. Será que é possível treinar resistência de velocidade na escrita como treinamos na piscina? E o que seria o resultado? Um texto, um poema, um fluxo? E uma escrita de endurance, como nas ultramaratonas aquáticas, é possível? Que forma ela teria? Talvez o convite a imaginar essas respostas seja mais para mim mesma, mas gosto de pensar que, como eu, existem outras cabeças e corpos inquietos por aí com vontade de experimentar. Ritmos, exercícios, movimentos. Na escrita e no esporte.
O corpo no texto é uma das marcas registradas da
, jornalista e especialista em bem-estar, que escreve a newsletter Tempo para você. Mês passado tirou um grande sabático das redes sociais e inclusive daqui do Substack – e tem compartilhado sobre como essa pausa foi essencial para continuar. Gabi ressalta a importância da entrega do corpo nas palavras:Por coincidência fui na fisioterapia e pontuei que não encontro posição para usar o computador corretamente. Sinto uma pontadinha na escápula, no meio das costas. Não é culpa da mesa ou da cadeira. Eu começo a escrever com postura e no meio já estou entregue ao texto. Minha fisioterapeuta disse que quando escrevo, sinto o que estou colocando na página. Por tabela, reviro o tronco. Ela tem razão. O exercício do corpo para mim não se trata apenas do que costumamos chamar de atividade física. Importante também, é preciso fortalecer cada músculo, vértebra, ossos. É preciso alongar, soltar, relaxar as articulações. É preciso causar um bombeamento sanguíneo de intensidade relativa para provocar uma respiração intensa. Tudo isso torna nossa escrita forte, fluida e com fôlego ao mesmo tempo.
Mas, o corpo vai além. Acredito que a gente carrega muitas emoções, muitas marcas das nossas escolhas, muitos registros, por vezes dolorosos, da postura exigida por nossa profissão. Exercitar essa história através da atividade física é o que torna o exercício da palavra maduro. O corpo nos entrega nossa verdade e a gente a escreve, mesmo na literatura ficcional. Acessamos vocabulário e repertório para ter nosso projeto quando quebramos a barreira do movimento para além da atividade física. Às vezes dançar é suficiente para tirar a gente de si mesmo, do ego, e colocar a energia onde precisa estar. Ganhamos confiança para acreditar na nossa voz sem ser pedante. Sem o exercício do corpo, na minha visão, é possível escrever, claro. Mas ter solidez, ser escritora, tomar posse do ofício, exige suor e corpo forte.
Assim como as colegas da palavra, acredito que o texto e o corpo se constroem juntos. Exercitar é forçar o movimento, é fazer dançar aquilo que parece imóvel à primeira vista. No instagram, tenho visto muitas pessoas começando a praticar corrida e sempre me emociono com vídeos em que se comemora os primeiros quilômetros sem andar. Ao contrário de Murakami, não vejo vergonha na caminhada – melhor andar do que desistir – e conquistar velocidade com conforto e segurança é uma sensação deveras gostosa. Também tenho acompanhado lançamentos de newsletters e de primeiros livros, igualmente me emociono: como é bonito ver nascer o resultado de um cuidado constante, insistente e atento. Por aqui seguimos, em busca de mais quilômetros, nos pés e nas linhas.
Drops:
As fofocas da vida de Virgininha descobri no delicioso Virginia Woolf e Vita Sackville-West: cartas de amor (Morrobranco Editora, 2023)
Pneumotórax, poema do Manuel Bandeira que cito no primeiro parágrafo, compõe o livro Libertinagem (Global Editora, 2013), no qual o mestre brinca com a forma do verso
Dr. Dráuzio Varella escreveu Correr: o exercício, a cidade e o desafio da maratona (Cia das Letras, 2015)
Tamara Klink é jovem, mas já escreveu cinco livros. Atualmente está ancorada na Groenlândia, sozinha – quer dizer, ela e a sardinha.
A frase do Murakami tirei daqui: Do que falo quando falo de corrida, Haruki Murakami (Ed. Alfaguara, 2010)
Última chamada: na próxima segunda, 29/04, às 19h: Clube do Livro Quer Quer Ler com o primeiro livro de poesias do ano: Amor Recreativo, da Luiza Leite Ferreira. Inscrições e mais informações aqui!
Essa newsletter é revisada pela jornalista e poeta Luiza Leite Ferreira.
Se gosta do que escrevo:
colabore no apoia.se
considere a assinatura paga
espalhe a palavra da news para sua rede
Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Valeu pelo convite, Paula! Felizmente são paulino por aqui :D
Amei!! Que texto gostoso de ler.
Me vi em alguns trechos.
Murakami adoro e esse livro dele é mto bom.
Obrigada, Paula! 😙