Gosto da expressão popular “desde que o mundo é mundo”. Não tem como usar essa afirmação em absoluto sobre nada, mas o sabor que é colocar esse peso no argumento que quero defender é gostoso demais. Na discussão em que ele aparece, quem fala e quem escuta sabe que, ao usar este exagero, o negócio é realmente sério: quem está discursando realmente precisa convencer a audiência. Em termos de internet nos anos 2020, perdemos essa medida porque aparentemente tudo está no nível de urgente, indispensável, absurdo. “Desde que o mundo” é mundo ficou apagado, perdido no tempo das conversas analógicas e de dias menos fervidos.
Carta de Vita - No Mar Vermelho, 6 de fevereiro de 1924
Como está o romance? Levada por esse vento quente, não consigo escrever uma palavra. Mas espero que meu pequeno celeiro esteja se abastecendo sob o Cruzeiro do Sul. Se não receber uma carta sua em Bombaim, vou morrer de desgosto –
Meu amor para Leonard.
Não é desde que o mundo é mundo, mas faz uns bons milênios que trocamos cartas. Eu, nostálgica e vintagista, sou inevitavelmente apaixonada pelo mundo analógico, cresci com promessas de uma tecnologia que nunca chegou a ser verdade e hoje sinto que não compreendo a linguagem, os modos e os comportamentos da era dos cronicamente online. O fato de ainda recortar revistas, pesquisar em livros físicos, praticar manualidades e não ter conseguido me relacionar com o tiktok me fixa em algum lugar do passado que parece não existir mais. Por outro lado, quando passo mais de um mês sem olhar para notícias ou consumir conteúdo online, parece que minha vida (ou eu mesma) muda pouco ou quase nada. E o mundo lá fora também continua com imperceptíveis alterações. Porque afinal de contas, desde que o mundo é mundo, seu destino é continuar a girar.
Seguindo meu plano pessoal de não assistir a séries novas, estou revendo, no momento descompressão do dia, a série adolescente Dawson’s Creek. Realizada entre o final dos anos 1990, é um prato cheio para desconfortos anacrônicos. Roteiro esquisito, diálogos improváveis, elenco muito branco e incontáveis preconceitos que garantiriam cancelamento nos dias de hoje. Contudo, vale destacar que as personagens mulheres são bem auto referidas, tem vida social e conversas que não giram apenas em torno de relacionamentos românticos com homens. Confesso que é difícil suportar o drama, a manipulação e os ataques histéricos que o jovem Dawson dá pelo menos três vezes por episódio. O núcleo principal da série é composto por adolescentes de 15 anos e as questões então são retratadas como típicas dessa idade, mas não me lembrava como este personagem era insosso, raso e irritante. De acordo com a fórmula de comédias românticas daquela época, em contraste temos a solidez e sabedoria de Joey (sua melhor amiga e eventual namorada) e Pacey (seu melhor amigo). Não ironicamente, ambos personagens tem uma história “atribulada” familiarmente e de origem menos favorecida economicamente. A chegada de uma quarta personagem, Jen, que é vizinha e nova colega da escola, mexe com a configuração do grupo e o tema principal da série se desenvolve: relacionamentos românticos.
Esse tipo de produção televisiva impactou meu imaginário millennial. O excesso de referências monocórdicas em temas que são centrais para uma pessoa em desenvolvimento – tais como identidade de gênero, imagem corporal, relacionamento amoroso, carreira e sucesso, modos de constituir família – fez com que minha geração ainda se debata violentamente para se compreender neste mundo. Sou de uma geração entre meios, que cresceu usando sem entender direito termos como globalização, efeito estufa, entrar na internet, bug do milênio e que hoje vive os efeitos de tudo isso na velocidade de áudios 2,5. Sou aberta a experiências, novidades, surpresas, e ao mesmo tempo, tenho receios, inseguranças e procuro direções e meios para conseguir navegar. Revisitando Dawson’s, também revisito a mim mesma, que, alguns episódios atrás (estou na segunda temporada), me deparo surpresa com os pais de Dawson discutindo sobre monogamia, lidando com o filho dando xilique (típico do chatonildo) e sofrendo de maneira adulta e respeitosa. Talvez algumas coisas sempre tenham estado lá, nesse mundo do audiovisual, mas eu não conseguia captar… Porque desde que o mundo é mundo, a gente precisa viver para aprender.
Diário de Virginia - 5 de outubro de 1927
Se minha caneta permitisse, deveria agora tentar traçar um cronograma de trabalho, tendo terminado meu último artigo para o Tribune, e estando agora livre de novo. E na mesma hora os artifícios estimulantes de sempre entram na minha cabeça: uma biografia que começa em 1500 e avança até os dias de hoje, intitulada Orlando: Vita; só que com uma mudança de sexo para o outro. Acho que, como um regalo, vou me permitir esboçar isso durante a semana.
Virginia Woolf e Vita Sackville-West foram amantes por quase vinte anos. Ambas tinham casamentos com homens e as relações fora da centralidade destes casamentos eram discutidas, informadas e compartilhadas entre essas pessoas. Quando li “Cartas de Amor”, a coletânea de correspondências e excertos de diários das escritoras, meu coração se excitou com uma alegria inédita. O primeiro livro de 2024 não poderia ter sido melhor, encontrar essa joia me fez repensar minhas idiossincrasias, meus romances e filmes favoritos. De repente tudo tinha menos graça – mas não importa, pois agora tenho em mãos uma história real e inspiradora para retomar, cheia de anotações, destaques e lacunas para uma releitura. O amor pode ser muitas coisas e, desde que o mundo é mundo, sempre pôde. As escritoras se encontraram no início do século passado e mantiveram uma profícua relação de trocas literárias, cuidados com saúde e sustento, viagens com a família e cachorros, tudo isso num país que até 1967 considerava a homoafetividade crime. Conheço a obra de Virginia desde a adolescência, sempre soube de seu trágico fim, mas nunca me ensinaram sobre sua ânsia de viver e suas alegrias, sobre seus amores e sua coragem. Sinto que ainda estou em formação sentimental, que este trabalho é um trabalho para a vida. Na beira do lago, seja no interior dos Estados Unidos ou da Inglaterra, lidar com amores, autoimagem, arte e conflitos não é simples, não tem receita e muito menos acolhimento social. O que sei é que, desde que o mundo é mundo, contar, ler e ouvir histórias muda como a gente olha e lida com a própria vida.
Clube do Livro Quem Quer Ler
Neste mês, dia 29 às 19h, teremos o primeiro encontro do Clube. Para mais informações, leia aqui!
Drops:
A história de Virginia e Vita encontra com Dawson’s Creek no tema de abertura do seriado, que é uma música em homenagem ao avô da cantora Paula Cole, sobrevivente da segunda guerra mundial
Se você quer pensar sobre amor e seu espectro nas relações, indico que siga a maravilhosa Geni Núñez
Não existe perdão nem cura
Quem sou eu, ótima edição da news da
Andanças e amor, por
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um abraço,
paulamaria.
desconfio que "desde que o mundo é mundo" seja uma expressão tão confortável porque ancora a gente em algo que "sempre foi assim", aquele quentinho intrauterino que é nosso porto seguro.
Ai, adorei essa edição 🖤