Não sou (só) eu quem me navega
Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela não salvo a mim (Ortega y Gasset)
Há dias me debato com referências bibliográficas para um trabalho da faculdade. Não deveria ser tão difícil, não escrevo algo inédito, não preciso defender uma tese perante uma banca, mas a tarefa de confrontar poemas de autores da maior estirpe da literatura nacional tem me tirado o sono. Entro num inception de textos, uma referência puxa a outra e nada, absolutamente nada parece bastar. São poemas mais escusos dentro de obras importantes e, apesar das sete abas abertas no navegador – além da lista de pdfs na pasta de downloads – ainda não me sinto preparada para afirmar nada além de traços estilísticos ou dados óbvios, como o contexto em que os poemas são publicados. Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade não eram parentes, não conviveram exatamente no mesmo círculo e compuseram suas obras poéticas de maneiras muito particulares, apesar de serem, os dois, modernistas.
A dupla poética em análise se debruçou de maneira quase incessante na escrita acerca do Brasil e da poesia. A partir dessas duas premissas, os poetas investigam a forma do texto e, através dela, registram suas inquietações, suas obsessões, as guerras mundiais, a política brasileira, o espírito da vanguarda, o amor, a decepção, a esperança, a consciência de si no mundo. Sim, também Mário e Carlos eram ensimesmados – essa palavra que aprendi na psicologia e que estou vendo circular nas últimas semanas – mas trabalhavam este sentimento que nos aparta do mundo como um caminho que os forçava a olhar para fora. Cada um à sua maneira apresenta suas angústias, suas prisões mentais, seus cacoetes sentimentais como degraus para a relação com o mundo. Isso não se faz apenas vomitando um poema ou um texto, isso se faz no árduo, Sísifico e, por vezes decepcionante trabalho de insistir na escrita e na busca pela palavra.
Estou inquieta com o aparecimento da palavra <ensimesmamento>. Faz quase uma década que não a escuto solta numa conversa, o ouvido estranha e traz memórias da graduação. De repente, sou novamente aquela jovem de vinte e poucos anos, em meio ao mar de palavras bonitas e rebuscadas dos textos que demorei anos para ao menos começar a entender. Estranho a cada vez em que a palavra se repete, como um estampido não previsto, como um sinal sonoro de freio de caminhão: essa palavra emerge e me deixa em alerta: do que será que estão falando? Quero escrever, claro, escrever me ajuda a compreender. E, de novo, escrever me convoca a pesquisar e ler. Abro mais meia dúzia de abas no navegador, deixo de lado o trabalho com Carlos e Mário e, navegando no Scielo, busco pelos termos <ensimesmamento e psicologia> e encontro:
é constitutivo do homem, diferentemente de todos os demais sêres, o ser capaz de perder-se, de se perder na selva da existência, dentro de si mesmo, e graças a essa outra sensação de perda, re-operar energicamente para voltar a encontrar-se. A capacidade e o desgôsto de sentir-se perdido são o seu trágico destino e seu ilustre privilégio. (Ortega y Gasset)1
Escrever é uma forma de se encontrar. Isso é mais velho do que andar pra frente, diria minha mãe. Estamos aí, desde as cavernas, sujando nossas mãos de tinta e contando historinhas para que alguém um dia leia. Desde que inventamos essa moda de desenhar letras, nunca mais paramos de registrar, registrar, registrar: fatos, invenções, sentimentos. A veracidade de cada coisa escrita que nunca poderá ser verificada porque quem escreve sempre mente. É uma armadilha minuciosa que adoramos esconder pelo bosque e depois caminhar por ele como se não houvesse perigo. Escrevemos e depois nos espantamos: como é que pude? Para o bem e para o mal, insistimos em desenhar letras, uma atrás da outra, como se isso pudesse, no final das contas, ser uma espécie de salvação. Volto ao meu trabalho e às anotações e rabiscos sobre Carlos e Mário. Sobre Drummond, Antônio Cândido aponta uma série de inquietudes do poeta: “Se aborda o ser, imediatamente lhe ocorre que seria mais válido tratar do mundo; se aborda o mundo, que melhor fora limitar-se ao modo de ser”. Anatol Rosenfeld olha para Mário e circula: o poeta se expressa com simplicidade impossível e duplicidade inevitável. Mário tem consciência da linguagem, de seus limites – da palavra e do seu eu. Na busca da solução de seus impasses, se fragmenta e é através da hachura que consegue voltear a questão. Carlos recusa as condições impostas pela realidade e aceita o limite da poesia, fazendo-a entre os limites de si e da forma. É impossível resolver, mas é possível passar pelas questões, seguir. Dar a volta na linguagem, dar a volta na vida:
[…] crise corresponde a uma viragem, uma transformação, que possibilita uma nova forma de vida. O sentido deste termo nos remete ao verbo virar, que, por sua vez, evoca uma torção, uma tomada de novos rumos, inversão do sentido tomado anteriormente; "colocar em posição contrária à que se encontrava; pôr do avesso, voltar (o lado interior) para fora, dar a volta a, dobrar, tornear, circundar, quebrar" (Ferreira, 2010, p. 2165). 2
Talvez escrever sobre si seja tão fascinante exatamente por parecer, de maneira concreta, uma transformação. O espanto das palavras na tela do computador ou da tinta no papel, não importa. Escrevo e logo em seguida quase esqueço, já não sou quem era antes. Escrever sobre si também é editar a própria vida, sabendo, contudo, que não mudamos os espólios do que aconteceu e apenas a nós é relegada essa herança maldita. Escrever é gastar tudo o que temos para transformar o sentimento em palavra – e frustrar, frustrar, frustrar porque não é possível. É difícil confrontar os poemas de Carlos e Mário porque mesmo no refino e na preciosidade de seus versos há a impossibilidade: o eu lírico ali está por conta própria, abandonado à própria sorte e eu não consigo salvá-lo. Olho para os poemas repetidamente na tentativa do encontro, ali testemunho o outro dobrando a própria vida, dobrando a si mesmo e ao mundo, ao mesmo tempo.
Buscar o sentido do que nos rodeia, conforme a indicação de Ortega y Gasset, soaria como uma busca pela compreensão, ou melhor, pela apreensão de significado. Nesse caminho, ressalto o entendimento […] de que salvar, para Ortega y Gasset, teria um sentido de buscar a compreensão, ou seja, um esforço pessoal por buscar a plenitude de significado, correlacionando, com base na pertinência recíproca, os fatos que compõem sua circunstância, como também correlacionando sua circunstância a si mesmo. Em suma, no pensamento de Ortega y Gasset, salvar caracteriza o esforço pessoal pela busca de significado da coimplicação eu-circunstância em todos os seus aspectos.
Sendo assim, se não salvo a minha circunstância não salvo a mim teria um sentido de se não compreendo a minha circunstância, radicalmente coimplicada comigo, não poderei compreender a mim mesmo. ²
Enquanto apuro o molho de meus argumentos para esse trabalho, escrevo a newsletter. Procrastinando com classe, diria
. Aceito meus movimentos na busca do sentido, estou aqui escrevendo sobre mim, sobre um desimportante trabalho de aproveitamento, que, na escala da vida, é só mais um texto no qual não me reconhecerei daqui um tempo. Mas escrevo porque preciso, preciso da nota, preciso da compreensão. Escrevo porque é uma escolha, poderia estar fazendo outras coisas ao invés de fingir intimidade com Carlos & Mário. Orteganizando minha atitude, escrevo porque preciso salvar essa circunstância, porque preciso salvar a mim mesma, todos os dias, por motivos diferentes e também inevitavelmente iguais.http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382014000200006
Drops:
Uma boa novidade: agora sou parceira da Escrevedeira - que oferece online e presencialmente cursos, oficinas e palestras sobre literatura, escrita e temas afins. Aproveito para divulgar o cupom de desconto para todo o site (TEESCREVO10) e o curso Escrever, mais uma vez, a mãe - com Beatriz Resende. O curso é on-line e ao vivo (as gravações ficam disponíveis depois).
Pré-vendas:
A Princesa Dourada e o Mandacaru Mágico de Elaine Resende, com apresentação de Vanessa Passos e ilustrações de Rafael Nunes, é o primeiro livro infantil da autora. O livro está sendo produzido pela Editora Caravana e Elaine é uma querida amiga que conheci no Valekerverso. Você pode apoiar a pré-venda aqui
Incêndios da Alma: Maria de Araújo e os milagres do Padre Cícero de
. A tese de doutorado premiada, que já passou até pelo podcast da ganha versão em livro. Publicada pela Editora Planeta, a capa está maravilhosa e a pré-venda é por aqui
Lançamento: Lilian Sais com sua plaquete “Palavra nenhuma”, publicada pelo Círculo de Poemas, terá o primeiro evento no dia 13 de julho, em São Paulo na Livraria Simples às 16h! Lembrando que vocês tem desconto na assinatura semestral e anual do círculo com o cupom CARTAS15
Escreva um conto em 14 dias com
em Da pupa à polpaManeiras de falar de si:
Se gosta do que escrevo:
🎁se quiser me presentear, a lista de livros tá aqui
🪙colabore no apoia.se
💳considere a assinatura paga
📖leia meu e-book por apenas 1,99
🫶🏽me acompanhe no instagram
💌 espalhe a palavra da news para sua rede
Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
no fundo, estamos sempre escrevendo sobre nós mesmos: a partir do momento em que escolhemos uma palavra, em detrimento de todas as outras, dizemos de nós.
os dois eram ensimesmados e usaram isso para dar várias piruetas, né? ❤️
no mais, me identifico com a inquietação para escrever na faculdade sobre autores grandes, isso sempre acontece em pelo menos uma disciplina por semestre aqui, então me compadeço do teu momento 🥹
belo texto, grande reflexão.