Não sou o que vejo
[...] vulcões cessam, e estar acordada é mais encantador que sonhar. (Dione Brand)
Este post é temático do mês de março e as discussões sobre a mulher. Em especial, provocada pela edição "O corpo imperfeito” da .
Sempre que vou tomar banho, antes me olho no espelho – sim, pelada. Tem dias que a imagem me repele, outros que me inspiram a dançar e ainda aqueles em que poso para ensaios fotográficos imaginários (uma sessão com Ellen von Unwerth não seria nada mal). Meu corpo não é exatamente este que vejo no espelho, mas... De alguma forma, também é. Minutos atrás tomei banho, pós treino de corrida. Me senti forte e feliz de ter me livrado do mau humor avassalador que a tpm deste mês trouxe. Escolhi uma roupa para o compromisso seguinte, o lançamento do livro de Jana Viscardi, uma roupa que me deixa confortável comigo mesma. Inclusive esse foi o conselho que dei a ela no story, quando a mesma perguntou o que vestir na noite de lançamento do seu primeiro livro: vista algo que seja quem você é.
A roupa que escolhi para sair me lembra d’outra ocasião. Todo mundo tem suas combinações de roupa preferidas, certo? A eleita foi blusa de linho branca e bordada, com uma calça azul marinho. Essa combinação de cores que é tão comum Brasil afora parece uniforme de escola. Pesquisando, descobri que o uniforme (ou a farda, dependendo de onde você mora) foi criado para defender a reputação das alunas da escola Normalista¹ na região do Estácio, no Rio de Janeiro. O uniforme estava a serviço da sociedade para distinguir moças de bem das moças <da vida> que circulavam pela região. Uma série de protestos e discussões eclodiram da imposição desta norma, inclusive com a participação da então garota Cecília Meirelles.
Voltando ao meu look, tempos atrás, me arrumando para um encontro, usei exatamente essa roupa, a blusa branca com calça marinho. No encontro, o date disse que parecia que eu estava indo dar aulas. Não senti que o comentário saiu em tom elogioso, era mais como um riso debochado, desses que, internamente, deus sabe que todo mundo dá, mas por fora, não deveria. Não era só a roupa. A roupa era eu. Diferente da imposição às normalistas do começo do século XX, usei essa roupa por escolha – exatamente porque me sentia bem, até aquele momento. Vestir novamente essas peças me fez lembrar deste dia e puxar um fio d’um novelo de memórias, com frases sobre o meu corpo e o modo como ele circula no mundo.
Infelizmente guardo meia dúzia desses novelos. De vez em quando, a vida abre seus armários e então eles caem, se desenrolando ferozmente. Enquanto termino de me arrumar, lembro de outra cena: adolescente, quando pelos engrossam e abundam-se. Eu, tão nova e tão desconhecida do mundo, começo a me incomodar com pêlos e com toda a revolução hormonal em meu corpo. Minha família inteira tinha palpites sobre o que eu deveria ou não fazer em relação a quase tudo: cortar os cabelos, ter namorado, fazer a sobrancelha, pintar cabelos. Os pelos, claro, não ficaram de fora dessa, inclusive tive que pedir ao meu pai para raspar a perna pela primeira vez. Escrever essa frase me faz encolher de vergonha, embora provavelmente meus pais nem se lembrem mais. O corpo guarda marcas, o meu corpo não se esqueceu. Esse corpo-casa se encolhe em 2024, depois de vinte e sete anos da primeira vez com pernas lisas de gilette.
“[…] as experiências traumáticas deixam marcas, seja em grande escala (na história dos países e da cultura) , seja em nossos lares e famílias, com seus segredos tenebrosos que passam de geração a outra. Também imprimem marcas na mente, nas emoções, na capacidade de desfrutar de alegrias e prazeres, e até no sistema biológico e imunológico”
(Bessel van der Kolk em O corpo guarda as marcas)
O novelo segue desenrolando e esbarro em outro episódio: um amigo, na época da faculdade, aponta para meu queixo e diz que tenho barba. Estávamos debaixo da minha árvore preferida do mundo inteiro, entre os prédios IC II e III na Ufes. Enrubesci e não lembro o que respondi, se respondi. Em 2024, ainda tiro esses pelos na pinça com muito ódio, pois eles machucam minha pele. Eu os odeio tanto que até mesmo fiz uma promessa com minha irmã.
Na Usp em 2024, muitas meninas e mulheres não se depilam. Vejo pernas peludas como as minhas de antigamente, vejo suvacos peludos, vejo buço e até mesmo pêlos no queixo. Claro que também vejo pessoas depiladas e pessoas híbridas. Apenas vejo. E sorrio por dentro, pela pessoa que não pude ser e que essas jovens se consideram podendo – sendo. Observo como há uma elasticidade de experiência, em como a beleza ou a feiura tem outras nuances, assim, enrolo de volta o fio ao novelo, e descanso adquirindo novas memórias do meu corpo em meio à outros. Em Jiboia², livro de contos de Cecília Garcia (Ed. Aboio), dois textos me chamam atenção. Em Bali, a camareira Joana trabalha em um motel e vive uma relação de amor consigo mesma através dos restos dos corpos alheios, deixados como marcas nos quartos que faxina. Em Suellen, o trocador de ônibus que se acha feio – e tem certeza de que todo mundo também acha – se apaixona por todas as partes corporais da passageira Suellen, que “é daquelas tempestades morninhas de fim de tarde, que acabam com a luz do bairro todo, mas que você aguenta porque espera que baixe o calor”. Neste livro, mistério, sonhos e linguagem nos aproximam dos corpos das personagens sem censura ou moralismos, sem pudores ou frescuras. São pessoas de experiências encarnadas, assim como nós. Os corpos vivem suas vidas, por vezes extraordinárias ou ordinárias demais. Diferente do modo como corpos são descritos e utilizados em obras como a tetralogia napolitana de Elena Ferrante. Quando há descrições físicas das personagens, essas descrições definem o destino delas naquele momento. Os olhos fundos de Lila, combinam com seu corpo emagrecido e sem viço, a imagem de sua ruína quando trabalha na fábrica de embutidos de Soccavo. A insegurança de Lenu, nos encontros não planejados com Nino, é figurada através de seu intenso questionamento sobre sua forma corporal, seu bronze, suas roupas: tudo parece inadequado para aquele homem, por ela imaginado como perfeito. Corpos podem ser protagonistas, coadjuvantes ou até antagonistas, mas sempre contarão histórias. É preciso aprender a fazer o recorte próprio, gastar o tempo antes do banho e olhar pra si no espelho, viajando entre a vida que se vive e outras possíveis.
Esta newsletter é revisada pela jornalista e poeta Luiza Leite Ferreira
Drops:
Recomendo a leitura do artigo A história por trás do uniforme azul e branco das normalistas do Rio de Janeiro, de Fábio Souza Lima.
Esta leitura foi possível através da parceria com a
e Jiboia pode ser adquirido no siteEm março, no Clube do Livro Quem Quer Ler, leremos As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez. Informações e inscrições aqui.
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Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Toda mulher vai ter histórias de quando o corpo começou a mudar e as coisas esquisitas que fez (ou foi levada a fazer) pra lidar com isso... Adorei o texto!
"é preciso aprender a fazer o recorte próprio" - e ao tomar a frente disso, nos vestimos também de desobediência, de autonomia... são estas as cores e texturas tão únicas que com certeza te tornam você ao vestir seu look de blusa branca com calça marinho. adorei o texto, Paula! :)