Moças e filhotes
Com meus olhos de cão paro diante do mar. Trêmulo e doente. Arcado, magro, farejo um peixe entre madeiras. Espinha. Cauda. Olho o mar mas não lhe sei o nome. (Hilda Hilst)
O texto de hoje é uma crônica revisitada. Escrevi uma versão em 2014 e aproveitei a visita de férias na minha cidade natal para rever outras camadas de mim.
Aproveito o cabeçalho para agradecer a leitura e compartilhamento do último texto. O tema é particularmente sensível para mim e fiquei feliz de receber o carinho e cuidado nos comentários. Em breve responderei a todos. Obrigada pelo acolhimento a minha escrita.
Moças da minha idade empurram carrinhos com seus bebês ao mesmo tempo em que rolam a tela do celular. Moças da minha idade, de unhas feitas, cabelos em dia e rostos harmonizados, brincam com seus bebês na areia da praia. Moças da minha idade passeiam com seus maridos no calçadão, de coleira em riste — no pet, não nos maridos.
Os bebês e filhotes, se estranham e se encontram. Se esbarram, se cheiram, se tocam e choram. Os pets, por vezes também bebês, latem, se cheiram, rosnam, sobem em cima uns dos outros. Filhotes humanos e não humanos, ainda não falam. Bebês ou cachorros, ambos têm rédeas. As mães e as donas, moças da minha idade, puxam e soltam as rédeas, regulando seus filhotes.
Certa vez, passando de carro em frente à rodoviária, duma casa no morro da Ilha do Príncipe, às margens da avenida, alguém lançou ao asfalto um pequeno cachorro. Assim, como quem lança uma latinha de coca cola pra fora do carro — TUM. É o barulho que lembro toda vez que me recordo da cena. E um mini corpo duro no chão. Não pude parar o carro, mas de alguma maneira parei ali. Choquei. Resisti. E quebrei em prantos. Filhotes frágeis e descartáveis, como nós, moças de qualquer idade.
Filhotes rosnam e resmungam porque é o que sabem falar. A gente cresce e desaprende a rosnar para o desconhecido e incômodo. Os filhotes, ainda crus em relação ao mundo, rosnam, gritam, esperneiam, passam vexame. Os cães continuam a rosnar por toda vida, ainda que lhes cortem as cordas vocais — alguns adultos creem na servidão de outras espécies. Os bebês aprendem com o passar do tempo a engolir o choro, então o barulho primitivo se transforma em ferida profunda.
As moças da minha idade não se encontram, não se cheiram, não se estranham. As moças com as formatações da vida aprenderam um padrão. Se tentarem rosnar, logo perderão as cordas vocais. As feridas profundas seguem abertas, mas disfarçadas com boas doses de unhas feitas, rostos harmonizados e fotos posadas em rede social. Infelizmente também as que não pintam as unhas, não cuidam dos cabelos ou não tem maridos e filhos passam pela mesma coisa. Em comum, a fúria entalada. E claro, um celular.
Diferentes de nós moças desvozeadas, os filhotes se permitem ser promíscuos. Seus parceiros costumam não durar mais do que uma brincadeira. O amor e ódio coexistem naquela relação tão primitiva: é tudo puro sentimento e experimentação. Na areia da praia, cachorros e bebês compartilham os mesmos germes e bactérias — eu sempre tive muito medo de pegar bicho geográfico. Na areia ou no calçadão, a distância boca-chão para os dois é parecida. Veem o mundo da mesma altura. Baita experiência. Baita humildade.
Filhotes não pedem muito. Filhotes precisam e não sabem definir o que precisam. Mas precisam e para isso rosnam. Talvez nós, moças da minha idade, precisemos resgatar os grunhidos internos. Suportar o rosnar, aprender a mostrar os dentes, latir mais alto do que o perigo. Sem coleira, sem celular. Olho e ouvido. Observar e imitar qualquer filhote, aquilo tudo que nos desensinaram a precisar.
Drops:
In dog we trust, uma crônica da Hilda Hilst
Hilda Hilst e os cachorros
O clássico dog days are over da Florence
Apoio o Gabriel e a Casa do Vira Lata há anos
A Deise Falci conheci na época das enchentes de Porto Alegre
Recomendo estudar poesia e animalidade com a Maria Esther Maciel
Pré-vendas de amigas escritoras:
- e duas obras sobre o Antropoceno
- e seu primeiro livro de contos: Camufladas
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um abraço,
paulamaria.
A gente se deixa silenciar e ser silenciada, isso de latir alto, rosnar, é tão difícil de aprender e dosar. Obrigada por mais um texto foda <3
E nessa lida tão complexa de reaprender a rosnar, latir mais alto, largar coleiras e celulares, a gente também tem que aprender a não ter medo de se sujar.