Maria del Bairro, a língua ao lado
👧Cubre la memoria de tu cara con la máscara de la que serás y asusta a la niña que fuiste. (Caminos del espejo, VI, Alejandra Pizarnik)
Primeiramente, gostaria de dar boas vindas pra quem chegou nos últimos dias. Monte de assinantes abrindo a porta de casa, oba! Agradeço pela indicação da
que fez uma edição deliciosa e me listou com outras queridas newsletteiras. Que rede gostosa temos!No mês de março, as cartas serão temáticas. Dia oito é dia internacional da mulher e convoquei colegas de newsletter para escrevermos sobre o tema, livremente, cada pessoa à sua maneira. Hoje, uma carta que escrevi em 2021, resgatada do começo da newsletter na qual discorro sobre a língua.
Língua não é só idioma, uma das coisas que tenho aprendido nas aulas do primeiro período de Letras - sou caloura na Universidade de São Paulo, vinte anos depois do primeiro vestibular. Língua, esse substantivo feminino que se refere ao órgão muscular coberto de mucosa que nos permite sentir gosto, que auxilia a digestão dos alimentos, que ajuda na produção de sons para a fala, que também serve para beijar, lamber e cuspir. Substantivo que também se refere ao conjunto de elementos que permite uma das formas de comunicação humana. Esse objeto de estudo da Linguística e de todo o curso que me propus a enfrentar ainda vai me dar muito trabalho. E foi por isso, pela sua característica feminina e pela minha nova experiência, que apresento novamente este texto.
Em espanhol, sobrevivência se traduz em superviviencia. A sonoridade dessa palavra me provoca, sinto uma fagulha de vida percorrendo meus poros, quase um arrepio fonético. Procurando no dicionário português-br, descubro que supervivência é sinônimo de sobrevivência e ambas tem origem etimológica no latim superviventia. Acho que às vezes esquecemos que somos línguas irmãs, civilizações irmãs… Um continente colonizado, com histórias que caminham lado a lado, mesmo que hoje não enxerguemos muito. Afinal, por que o Brasil não parece latinoamericano? Dia desses, no grupo dos Valekers, rolou uma conversa muito interessante sobre limites geográficos e mistura/confusão de culturas. Cito aqui ipsis literis a querida Maria Carolina com sua contribuição intrigante:
em linguística histórica existe um conceito chamado adstrato, que é quando línguas distintas convivem (principalmente por questões geográficas e políticas) numa determinada região, influenciando e sofrendo influência, mas sem sobreposição. Português e espanhol são exemplos clássicos, mas na formação do nosso idioma tb tem o exemplo árabe na Península Ibérica. Eu acho muito bonito o termo que o Câmara Jr. usa para explicar o fenômeno: "manancial eterno de empréstimos".
Supervivência pode ter sido um desses empréstimos sem agiota que fazemos na construção da linguagem brasileira. Mas tem uma palavra desse manancial que pouco nos aproveitamos dela: latinoamericana. Na memória afetiva, a primeira voz que aparece é a de Belchior, seguido de outra imagem-voz, dessa vez com sotaque uruguaio, que me sussurra mentalmente a frase: “yo soy latinoamericana”. A ausência da persistência dessa palavra tão definidora para uma mulher brasileira me faz tentar recordar com qual sotaque comecei a aprender espanhol, mas falho no esforço. Talvez tenha sido através das baladas românticas de Julio Iglesias, que meus pais ouviam bastante quando eu era criança. O primeiro sotaque é ibérico, longe de ser latinoamericano, apesar de seu sucesso estrondoso por aqui, Julio é madrileno e foi jogador de futebol. Apesar da similaridade do espanhol com português, eu pouco entendia o que ele cantava, mas ficava com a impressão do romance e da sedução, provavelmente mais por conta das fotos sensuais de Julio do que pelas músicas em si.
Lembro da época que o ensino de espanhol chegou à escola regular. Sempre estudei em escolas particulares e no colégio da época começamos a aprender espanhol na sétima série, que hoje equivale ao oitavo ano. Era 1999, eu tinha 13 anos e o mundo estava com medo do bug do milênio. Mal a gente sabia que ele ia demorar uns 20 anos pra chegar e que se chamaria na verdade covid-19 e seria um vírus fora dos computadores. Quem viveu sabe.
Muitos reclamavam das aulas, tratavam mal os professores (nada de novo) e o descolado era aprender inglês (mas todo mundo reclamava também). Concomitante às poucas horas de estudo na escola, eu treinava meu vocabulário ouvindo música latina na tv a cabo. Sou geração MTV da época que ela era um canal de música e não de reality shows sobre relacionamentos. Tive acesso à TV por assinatura, na época em que a internet ainda era discada e só podia conectar depois das 21h. Na finada Directv, além da MTV Brasil, era possível assistir à MTV Latino, que me fazia passar tardes inteiras com bandas que jamais poderia ter conhecido e ainda podia ver os lançamentos internacionais antes de chegarem à MTVBr. Estreia, música internacional, TV, vídeoclipe. Outro mundo, outra era.
Vinte e poucos anos se passaram e não é incomum ouvir que a língua espanhola é cafona . Isso me intriga demais… Meu aprendizado com o idioma não se estendeu muito além da escola e dos estudos autodidatas, mas sinto que tenho um nível de compreensão muito bom da língua, talvez pelo gosto que tomei em ouvir artistas latinos além da Shakira. Ouvi num podcast que essa pretensa cafonice do espanhol pode ser uma das razões pelas quais a gente aqui no Brasil não se identifica tanto com o continente e com nossos hermanos. Bem verdade que nossa extensão territorial poderia ser tranquilamente um continente à parte, além do fato da colonização portuguesa ter ficado com o quinhão do lado de cá. Mas o que afinal faz com que a gente renegue tanto a latinoamericanidade? Ou melhor: quando nos identificamos com ela, atropelamos as outras culturas e enfiamos a bossa nova e a tropicália goela abaixo sem mesmo pensar em outra coisa. Nem na nossa própria história pregressa à colonização...
Dicas:
O grupo dos Valekers é uma cortesia da escritora
para assinantes do seu apoia-seDuas artistas brasileiras que resgatam a latinidade em seus trabalhos: Pri Barbosa e Andrea Orue
Se quiser conhecer um pouco sobre a história do rock latinoamericano, indico o Quebra Tudo, documentário disponível na Netflix
Uma playlist: xo soi latinoamericana. Aproveita e me segue no Spotify!
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um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Que edição incrível ❤️ amei
adorei esse texto, Paula! ainda não estava por aqui quando foi publicado pela primeira vez.
essa semana estava pensando nas diferenças do espanhol ibérico e latinoamericano quando dei um play num audiolivro de Guadalupe Nettel (mexicana) e a narradora tinha aquele sotaque carregado que eu atribuo a Madrid sem nunca ter ido para a Espanha. foi impossível continuar sabendo que a escritora é mexicana. a narradora deveria ser também, pensei. o que me lembra que nas aulas de espanhol do colégio a professora que me deu aula por mais tempo era da Venezuela e os áudios utilizados no material didático nos mostrava que deveríamos aprender o espanhol 'oficial' da Espanha.
enfim, sou grande entusiasta dos sotaques (e vocabulários) latinoamericanos, principalmente o chileno <3