Todo corpo é casa. Já pensei em mudar o começo do texto de hoje muitas vezes, mas essa é a frase que mais me convoca a desenrolar as ideias. Então escolho deixá-la ali, forte, seca, onipotente. Vou por alguns parágrafos abrir mão da habitual relativização de conceitos e deixar que essa frase defina o caminho que seguirei daqui por diante. Todo corpo é casa e hoje peço licença pra me aproximar da sua.
Sou uma mulher de 36 anos que passou sua adolescência e juventude numa época em que a magreza extrema era não apenas celebrada, mas também incentivada e vista como o padrão de beleza. Todas as revistas femininas, incluindo aquelas voltadas ao público adolescente, eram recheadas de programas de emagrecimento, dicas para fisgar seu homem e roupas para parecer pesar menos. As referências na cultura pop também não ficavam para trás: as atrizes, celebridades e cantoras de sucesso eram magérrimas, com suas barrigas negativas exibidas com a terrível moda da cintura baixa. Mais de vinte anos se passaram e eu ainda não lido bem com a minha barriga que sempre dobrou – mesmo nos períodos de menor peso.
A despeito das modelos capas da Capricho e personagens da Malhação, considero que sempre tive um corpo padrão: não sou uma pessoa com deficiência e mesmo não exibindo a magreza da moda, não posso considerar que fui uma adolescente gorda. O padrão se confirmava no fato, por exemplo, de encontrar roupas que me cabiam na maioria das lojas, de ter escapado de ser alvo de bullying na escola e de ter tido relacionamentos românticos. Cito esses exemplos porque hoje entendo que, apesar de parecerem experiências banais, pessoas ‘fora do padrão’ são excluídas ou impedidas de vivê-las. Se estando dentro dos padrões até hoje me debato internamente para não odiar minhas formas, é evidente que corpos dissidentes lutam contra batalhas muito além das fronteiras da beleza.
Ivan Baron, que subiu a rampa do Palácio do Planalto no dia 01 de janeiro junto com outras pessoas brasileiras e o presidente da república, compartilhou esses dias um vídeo sobre seu corpo torto. Com ele, experimentei sensações como delicadeza e cuidado, amor e lentidão. O corpo só quer existir, não quer servir a alguém, quer ser casa, abrigo, segurança. Todo corpo merece existir, circular, dançar, viajar, amar, ser amado. Horas de contemplação, dedicação com chuva de beijos, torrar ao sol sem pudor, praticar exercícios físicos para o bem-estar, dançar sem vergonha, ser admirado, ter direito ao transporte sem rechaço ou dificuldades. O corpo só quer estar, quer ser possível, em quaisquer formas: pessoas altas, pessoas com nanismo, pessoas gordas, pessoas medianas, crianças, pessoas com deficiência, pessoas magras, pessoas velhas: pessoas.
Uma lembrança importante me aparece, que ajuda a compreender porque, às vezes, me percebo com raiva do meu corpo. É o cenário dos padrões? Sim. Mas existem pinceladas específicas, pintadas muito tempo atrás na tela da minha vida. Numa aula de educação física, aos 12 anos, aprendíamos os princípios do basquete. Treinávamos a bandeja, movimento ao redor da cesta, composto por três passos batendo a bola, seguido de um salto com uma das pernas e do lançamento da bola. Em fila indiana, uma a uma da turma fazia sua tentativa de cesta e então retornava ao final da fila. À minha frente, uma colega sofre na sua vez, se perde na ordem dos passos e erra uma dúzia de vezes. A professora, aos berros, perde a paciência e a manda de volta à fila. Estremeço, me aproximo da professora e aguardo a bola. Tento uma, duas, três, algumas vezes, já não me recordo. Novamente, a professora esbraveja e dessa vez, com mais raiva do que com minha colega, lança suas mãos contra minha coxa e me dá um estalado tapa. Não sei o que aconteceu a seguir. Ao descrever essa cena, meus ouvidos se tapam em pressão, meu coração palpita errante, minhas mãos se gelam: novamente estou em frente às colegas, apanhando da professora, humilhada pelo corpo que não respondia aos comandos esperados, num momento que ecoou pela quadra do colégio. Não chorei.
Na saída da escola, como de costume, minha mãe foi me buscar e logo percebeu que havia algo de errado. Eu era uma adolescente estranha, mas naquele dia o tom era outro. Quando se recorda desse dia, minha mãe fala que viu em minha coxa uma marca vermelha, que eu inicialmente não quis comentar e que depois de minutos de insistência, relatei o ocorrido. Ela diz ter ido até a diretoria e que a responsável pelo colégio quis expulsar a referida professora, caso que foi resolvido por outro caminho. A adulta que deveria ter acolhido meu corpo com carinho e atenção havia me violentado. Isso doeu em 1997 como dói ainda hoje. O meu corpo, ferido por ser inadequado, por não corresponder ao comando de outro. O meu corpo que não podia ser quem ele quisesse – talvez ele só não quisesse jogar basquete aquele dia, sabe?
Esse episódio é uma das marcas colecionáveis num mundo que odeia e pune nossos corpos de inúmeras maneiras. Compartilho essa história deixando que você se aproxime mais da minha casa-corpo, lugar que habito com batalhas e conquistas e que apesar do que me disseram as revistas, a professora de educação física, o mundo machista e misógino, alguns homens que me relacionei e até desconhecidos nas ruas, segue pulsante procurando apenas ser e estar.
me observo. pela luz opaca da janela sem cortinas, me observo. jogo o lençol de lado e vejo pernas bonitas, de marcas visíveis e outras nem tanto. caminho o olhar pelo colchão e descubro poucas memórias escritas por aqui. o corpo grita, mas o quarto não. me observo. esse chão de madeira hesita quando a temperatura muda. e estala. meus braços hesitam em esticar até o corpo que deita ao lado. um mundo outro, uma terra além-mar. não sei. e me observo. o ano começa novamente e parece mais do mesmo. o futuro por vezes se repete. sinto fome. sinto sede. olho meu ventre de cicatrizes elegidas e também de circunstâncias. pouso minhas mãos por um instante. me observo. o coração rodopia lapsos de memória em carrossel, como fosse paris no outono. imagens, sons, cheiros. aperto a palma da mão contra o espaço entre minhas coxas. um infinito instante. me observo. busco este caderno pois literar a vida constrói caminhos possíveis. a luz que busco já existe e nunca se apagou. não há certo e errado quando estou só. me observo. meus peitos macios, de pintas, pelos e marcas, se espalham para os lados quando me deito. no entre, cabem os sentimentos mais profundos. mais uma vez, me observo. a cara inexata não finge constrangimentos e nem se envergonha de viver. ébria ou sóbria, na luz dos dias me refaço e me conheço. registro e compartilho. (texto meu, 2021)
observações:
Essa carta foi disparada depois da leitura de ‘ano que vem não vou emagrecer’, da
.Uma playlist pra dedicar um tempinho e colocar seu corpitcho pra jogo na sala de casa.
Duas influencers para acompanhar: Amanda Soares e Luana Carvalho.
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A partir dessa edição, as cartas serão revisadas pela Luiza Leite. Me sinto chic em ter uma revisora! Isso só é possível porque tenho pessoas apoiadoras!
Então… Gosta do que eu escrevo? Considere apoiar meu trabalho continuamente. Ou, caso queira mandar um mimo, aceito pix em oi.pmescreve@gmail.com
um abraço,
paulamaria.
Sinto muito pela violência que você sofreu.
Ouvir e relembrar as experiências de quem foi criança / adolescente nos anos 90/2000 é algo absolutamente assustador. Espero (do fundo do coração) que essa realidade esteja mudando e as crianças e adolescentes desta geração possam ser muito mais acolhidos e respeitados.
Há um tempo atrás eu escrevi uma crônica sobre minha dificuldade de aceitação do meu corpo.
Se te interessar, fica aqui o link, vou adorar saber o que você achou.
https://devaneioseloucuras.substack.com/p/brigando-com-espelhos-e-o-dilema-do-vinho-tinto-35af963a0f6c
Oi, Paula, sei que as lembranças trazem de volta sentimentos que a gente quer esquecer. A propósito, seu corpo é lindo, pois um corpo sem marcas, recalchutado, não é natural. Pena que as adolescentes são tão suscetíveis a esses ataques, o que é uma covardia.
Mais textos como esse são alerta para a gente aprender a se amar.
Fique bem
Beijo, Menina