Dê uma chance para não saber
Se eu não entender/ Não vou responder/ Então eu escuto (Secos e Molhados)

“Isso não é um cachimbo. Repetir dez vezes, em voz alta. Colar na parede do quarto e consultar sempre que for preciso”. Depois de receber esse castigo numa determinada aula da faculdade, <enfiei minha viola no saco> e fui pensar sobre o que é afinal uma <leitura correta>.
Não acredito que existam fórmulas para interpretar o mundo. Quero dizer que não acredito em fórmulas corretas para se chegar a uma pretensa verdade sobre o mundo – o que de maneira alguma me coloca no balaio da anticiência, ok? Ok. Quanto mais eu vivo – além de perder colágeno e acumular dores e cacarecos – mais percebo que me falta lastro e profundidade. As pilhas de livros crescem como minhas unhas, as anotações do que preciso (e talvez nunca consiga) estudar se acumulam em cadernos, mensagens para mim mesma, notas no aplicativo do celular e rascunhos do google drive. Por outro lado, devo reconhecer que os anos vividos (com acúmulo de cacarecos e rugas) me auxiliam com respostas que não estão nos livros nem nos estudos científicos, porque a experiência é esse algo tão singular e intransferível, tal qual uma passagem de avião ou um cartão de vacina. A conta e risco é sua e somente sua. Alívio e responsabilidade. Dor e delícia.
Mesmo que eu desacredite em fórmulas para encontrar <a verdade> sobre o mundo, seria bobo e indolente de minha parte não reconhecer o poder transformador das tentativas humanas de produzir <leituras possíveis> sobre a vida. Estamos, desde que saímos da caverna, olhando para esse <fora> e produzindo conhecimento. O que é a vida? O que é o futuro? Por que sonhamos? O que é o amor? Existe vida após a morte? O que é a morte? Por que estamos organizados em grupos? Como a chuva cai do céu? Por que o mar é azul? Existe borda no infinito? Por que um soneto tem doze sílabas? O que poderia estar neste espaço do fragmento número X de Safo? Por que sentimos o gosto do cheiro? O que era o ovo de Clarice? Quem foi Homero? Quem era Shakespeare? A cor azul não existe? Posso passar um dia, dois, até cinco elencando perguntas: muitas delas seguiriam sem resposta. Pelo menos sem uma resposta <verdadeira>.
No primeiro ano da faculdade de Letras tive dois cursos introdutórios aos Estudos Clássicos. Neles pude conhecer diversos autores e obras gregas e latinas, sendo o mais marcante (e dificilmente seria diferente), Homero. Ler e me aprofundar em textos como a Ilíada e a Odisséia – apenas com o estoque de romances e poesias que acumulei durante a vida – seria uma experiência muito diferente do que essa recente. Ter acesso a chaves específicas de interpretação foram fundamentais para minha compreensão e também para o estabelecimento de uma conexão com aquela obra tão, tão distante no espaço-tempo. Através de milhares de pessoas que vieram antes de mim, olhei para esse clássico com carinho e admiração. Hoje no meu imaginário moram personagens, cenários e questões tão antigas quanto andar para frente. De repente, eu e Odisseu estamos olhando para o mar na viagem de volta para casa e pensando… O que me espera em meu lar?
Mas… será que seria impossível entender esses e outros clássicos sem aporte interpretativo? Não sou capaz de olhar para algo e tecer a <minha própria opinião>? Se não acredito em <verdades absolutas> por que preciso consultar opiniões alheias? Porque é claro, tudo tem contexto e entendê-lo pode ampliar as possibilidades de interpretação. Algo que tenho deixado à disposição mental na pilha de leituras é não enfiar anacronia logo de cara enquanto leio. Por vezes as análises anacrônicas, isto é, descoladas do contexto no qual as obras são criadas, é quase puramente <viajar na maionese>. O que, por outro lado, também não é proibido – uma obra de arte está aí para provocar, ser provocada, transformar o mundo ou deixá-lo na mesma: não existe controle. Mas, se quiser segurar na mão da suposta intenção de quem escreve, eu te diria para segurar com a outra mão no controle da ansiedade em descontextualizar tudo. Uma obra, seja ela literária ou de outras artes, terá intencionalidade em sua construção – e isso junto com outras coisas, é que compõem uma autoria. É que intencionalidade nem sempre é <querer dizer algo>, é mais provável que seja <dizer algo> em si só: a forma também é conteúdo. Aquela máxima do “mostre, não conte” que todo mundo que escreve já ouviu falar.
Mas… fique calma antes de me mandar um comentário: não estou dizendo para que você não teça críticas. Pelo contrário, acredito que a crítica virá a partir de uma aproximação genuína da obra e de seu contexto, do coração aberto de quem, frente ao desconhecido, percebe com atenção. O desafio é não presumir o que se sabe sobre algo antes mesmo de saber sobre o algo. Fique ao lado de Odisseu, olhe para o mar e se faça uma dúzia de boas perguntas. Uma baita pedra no sapato em tempos de <leitura dinâmica> e redes <sociais>, né? E também um suspiro de alívio quando você quer (ou precisa) conseguir olhar para algo e tentar ver com a (sua) intenção. Alguns desconfortos devem ser suportados – exceto, por exemplo, castigos bestas de professores em sala de aula. E viva a leitura!
Drops
- oferece Oficina de Mediação de Rodas de Leitura
- oferece Mergulho na personagem com a Seiva
- e Renata Camargo falam sobre a internet e o artista
VEM AÍ: 5 e 6 de julho. Teremos mais uma edição do evento online para quem lê newsletters, O Texto e o Tempo! Aguardem mais informações pelas redes do evento e pelos palestrantes de outras edições
Fabulosas Mulheres que se Escrevem é um podcast capixaba encabeçado por Mara Coradello e Fabíola Mozine, que conta sobre as vidas de 5 escritoras do Espírito Santo: Carmélia, Marly de Oliveira, Marzya Figueiredo, Haydée Nicolussi e Lacy Ribeiro
Ando lenta (lentíssima) nas leituras de newsletters e peço perdão aos colegas que assino. O tranco uma hora pega, enquanto isso deixo vocês com essa beleza infinita que é a escrita do
:
Antes de fechar esse e-mail, mais um instante da sua atenção: criei um formulário anônimo e livre para perguntas, comentários gerais, sugestões e críticas. Estou de coração aberto:
Se gosta do que eu escrevo:
🪙colabore no apoia.se
💳considere a assinatura paga / pix para oi.pmescreve@gmail.com
📖leia meu e-book por apenas 1,99
🫶🏽me acompanhe no instagram
💌 espalhe a palavra da news para sua rede
um abraço,
paulamaria.
Leia, leia, leia. Se nesse percurso aparecer a verdade, aceite-a como um vento passante. Mais adiante, quando os dias à frente ficarem mais curtos que os passados, vai perceber que essa tal verdade tece durante o dia para se desmanchar durante a noite. Mas continue lendo.
Obrigado por compartilhar!
Interessante ver esse lado de quem tá na graduação em Letras. Eu tenho vontade de fazer um dia.