Crescer é perigoso
Sobre ter outra vida, isso é algo que desejo mais vezes do que gostaria. (Na intimidade do silêncio, Cintia Brasileiro, ed. Aboio)
Considero que sou uma late bloomer; em bom português, desabrochei mais tarde. Mesmo que o conceito de tarde seja relativo, comparando com pessoas da mesma geração, vivi coisas um tempo depois da maioria. Talvez seja melhor dizer que tudo aconteceu no tempo que deu. As experiências às quais fui exposta e as que pude me proporcionar fizeram com que o desabrochar – chamo assim o início do adultecer – viesse mais tarde porque não havia mesmo condições antes, o corpo pode aquilo que ele consegue, e esse é um mistério que a gente só descobre vivendo.
Assisti a três filmes indicados ao Oscar 2024 e ainda que sejam bem diferentes entre si – enredo, personagens, ambientação e inclusive a língua! – algo me parece passar como um fio discreto entre essas histórias, que borda num ponto quase invisível de brilho discreto, mas que me chamou a atenção. Sou obcecada por detalhes e em relacionar coisas aparentemente avulsas. Vidas passadas, Anatomia de uma queda e Pobres criaturas têm mulheres como personagens centrais: Nora Moon, uma imigrante coreana nos Estados Unidos; Sandra, uma imigrante alemã no interior da França e Bella Baxter, uma imigrante do espaço/tempo. Personagens deslocadas, em busca da afirmação irrevogável das próprias escolhas: vida, corpo, decisões. Ao seu modo, cada uma decide e defende viver de acordo com o que escreve para o próprio destino, sem negociatas ou cabeça baixa. Este fio discreto e brilhante que liga as histórias toca e desperta identificação profunda, porque em algum momento da vida, toda mulher já teve que se agarrar em si mesma para prosseguir. Há nessas narrativas um lembrete importante: quem vive a sua vida é você, defenda este direito, ainda que seja custoso.
Annie Ernaux é uma mestra em nos apresentar em forma de literatura, suas histórias pessoais. No livro A vergonha, desenha o panorama de sua infância e adolescência, a partir da agressão física perpetrada pelo pai contra sua mãe. Publicado originalmente em 1996, o livro não se limita a falar de violência doméstica. Ernaux, numa espécie de romance autobiográfico de formação, mostra como foi para ela crescer na pobreza e na educação católica do interior da França, que define, por um longo período, quem foi aquela menina, em meados do século passado. Ernaux olha para essa menina e nos apresenta um jogo de aproximação e afastamento, ora se compadecendo das situações vexatórias – e por vezes, humilhantes – e ora com alívio e respeito em se reconhecer totalmente diferente daquela que hoje só existe em parcas fotografias. Annie pode crescer, fazer escolhas e escrever uma história diferente de tudo aquilo que conhecia, o que não se faz sem dor, sem culpa ou sem dificuldade. Parece que voltar ao passado e visitar os lugares escuros de onde forjamos parte de nós é quase sempre inevitável, mas ao contrário do conselho de escrita de Natália Goldberg em Escrevendo com a alma, que diz que devemos voltar ao nosso lugar de origem pelo menos uma vez na vida, Ernaux não romantiza essa visita. Inclusive, a cidade onde cresceu segue sem nome durante o livro, chamada apenas de Y. Voltando ou não para seu lugar natal, hoje sei, morando longe de Vila Velha, que não há nada para resgatar, não há nada para ser salvo. Como Annie, faço meu próprio jogo de semelhanças: aqui, ainda sou, aqui, diferi.
As personagens dos filmes do Oscar têm diferentes escolhas a respeito de voltar ao lugar de origem. Pensar sobre o assunto, contudo, não é uma ideia facultativa. Parece que uma mulher sempre se ocupa da relação com suas raízes e a maneira como o faz é crucial na definição de como lidará com escolhas, pro resto de suas vidas. Seja quem opta por ficar e nunca se afastar de sua origem, seja quem deseja ir embora em definitivo, seja aquelas que retornam como visitas. Independentemente do caminho, as personagens andantes defendem o direito de construírem narrativa própria, reconhecendo suas origens mas não permitindo que estas atropelem sua autonomia e liberdade. Quando confrontadas, ridicularizadas, etiquetadas ou pormenorizadas, revertem o placar do jogo da vida de modo perspicaz: a maneira inteligente e profunda que cada uma se conhece ao longo da formação de si, dá força e coragem para que não se dobrem, ou, se dobrarem, que não quebrem e retomem seus caminhos.
Aos dezessete anos, vivendo em Alagoas com a família, decidi que voltaria a morar na minha cidade natal. Minha família havia se mudado pela segunda vez em menos de dois anos e eu terminava o ensino médio. Prestar vestibular e fazer faculdade em Maceió parecia distante demais do que eu havia imaginado pro meu futuro. Ter a adolescência conturbada com adaptações de escola, amigos e cidade tinha um peso grande que só entendi mais tarde. Fiz meu melhor, fiz o que pude e tenho boas lembranças, mas queria controlar meu futuro – pelo menos tentar. Eu não sabia, mas hoje vejo que eu era uma menina de bravura indômita: determinada, focada, dedicada. Minha bravura sempre me pôs em movimento, em direção ao meu desejo, ao futuro ainda sem forma, mas repleto de disposição. Não foi fácil me despedir da minha família que ficaria a quase três mil quilômetros de distância, sofri bullying dos meus irmãos que se referiam a esse período como na-época-que-você-não-era-irmã. Sofri, chorei e nunca olhei para trás. Peguei minhas coisinhas e parti de volta para Vila Velha e o sonho do vestibular na Ufes, que conquistei depois de um ano de estudos e noites vendo Medalhão Persa na TV com vovó. Nestes dois anos morando com ela, experimentei a solidão que uma família de cinco integrantes não me permitia. Minha avó é uma pessoa de muitos silêncios e que respeita a intimidade alheia como ninguém. Aprendi com ela a esperar o tempo das coisas, a fazer companhia sem me intrometer, a me recolher quando preciso de tempo. Ainda adolescente, pude estar com meu corpo em liberdade, passar muitas horas pesquisando minha pele através do espelho, ouvindo músicas e batendo papo no MSN. Me fotografei intensamente, selfies no lusco fusco da luz do computador ou de uma vela. Troquei angústias e curiosidades com amigos em longas conversas madrugada adentro, experimentando o frio na barriga de quem manda mensagens e acompanha na tela o famigerado digitando…
Minha família ficou em Alagoas por dois anos. Neste período fiz cursinho, faculdade particular e depois comecei as aulas na Ufes. Quando voltaram para Vila Velha, voltei a morar com eles e outra adaptação surgiu. Eu já era outra pessoa e eles também. Os anos da faculdade foram meus anos de formação, como disse, desabrochei mais tarde, diferente de colegas que tinham vivido o ensino médio intensamente com suas descobertas. Foi na faculdade que explorei outros vocabulários, que gastei noites na pista de dança, que conheci gente fora do círculo família-colégio da vida toda, que comecei a escrever e publicar na internet, que fiz laços de amizade que duram décadas. Meus pais não estavam acostumados com essa versão da paulamaria, o que causou choques, muitos choques pelo caminho. Não era sobre ser ou não uma boa aluna, me sair bem nos estágios ou iniciações científicas. Eu me tornava alguém diferente do que eles conheciam e também do que esperavam, e ainda que tivéssemos muito amor, outros sentimentos se misturavam nessa relação íntima que se desfazia naquele momento. Crescer significa ocupar mais espaço e eu queria mais. Foram anos difíceis, para mim e para eles também. Como Nora Moon, reaprendi a me expressar no léxico familiar, mesmo sabendo que nunca mais falaria a linguagem de outrora. Como Sandra, defendi meu espaço e meu tempo, facilmente engolidos pelas demandas alheias quando se divide uma casa com tanta gente. Como Bella Baxter, fui ver o mundo com meus olhos e minhas pernas, com medo de me perder, mas muito mais confiante de que iria me encontrar.
Confesso que ainda me percebo florescendo, talvez seja um sentimento recorrente da idade adulta. Já não sou a menina que cresceu em Vila Velha, nem mesmo a que morou em Alagoas, porém elas seguem comigo pois são pedaços imprescindíveis da pessoa que se forma em mim agora. Ainda que episódios lamentáveis façam parte do meu passado, já não carrego a vergonha que me era inescapável quando pequena. Argonauta de roteiro autoral, dona das minhas decisões e ciente do pouco controle que tenho sobre as intempéries da vida, sigo. Desabrochar é poder continuar me surpreendendo com as delicadezas da vida. De maneira poética e pragmática, nos diz Rainer Maria Rilke: deixe tudo acontecer com você / a beleza e o terror / não desista / nenhum sentimento é definitivo.
Assistiu alguns dos filmes que citei? O que achou? Todos estão disponíveis nos cinemas (a depender de onde você mora). Ainda não chegaram aos streamings no Brasil.
Os livros citados, caso te interessem, podem ser comprados na Amazon. Este é meu link de afiliada e comprando por ele, recebo uns trocados pela indicação.
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Drops:
Ph Santos comenta Vidas Passadas e Pobres Criaturas.
Os três filmes citados foram dirigidos ou produzidos por mulheres. Celine Song escreveu e dirigiu Vidas Passadas, Emma Stone atuou e produziu Pobres Criaturas e Justine Triet dirigiu Anatomia de uma queda e é a única mulher indicada ao Oscar de melhor direção.
Pra quem lê em inglês, no The NY Times essa matéria sobre o figurino da personagem Bella Baxter.
Essa edição da Andanças da
sobre Vidas Passadas (contém spoilers).O próximo encontro do Clube do Livro Quem Quer Ler será dia 26/02, segunda feira, 19h. O livro que debateremos é Água Funda da Ruth Guimarães. A participação é gratuita e mais informações e inscrições aqui.
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Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
dos filmes citados, vi apenas "anatomia de uma queda", que tem um roteiro primoroso! e, curiosamente, estou lendo o livro da annie ernaux neste momento. achei muito bonita a forma como você costurou as duas obras com seu crescimento pessoal.
Lindo texto, adorei as conexões que foram feitas