Brasil profundo e outros eus
Essas palavras/ põem em luta/ milhões de corações/por milhares de anos. (Maiakóvski)
Em Brasília mulheres usam salto e roupas sociais
As ruas não tem calçadas e o sol está sempre a pino
O céu é realmente lindo, certíssimo está o Djavan
O traço do arquiteto pega mesmo quem não quer ver
Cidade satélite não é mais um termo aceitável
Mas não existem municípios por aqui
Brasília não é um planeta
Mas na intenção parece.
Escrevi esses versos contaminada pelo pós-férias. Sob a ótica de uma turista, diria que vi muito do <brasil profundo>, esse conceito bonito e essencialista, mas que me parece, pensando por dois segundos, um jeito de exotizar aquilo que não é do nosso cotidiano. Os lugares que ainda não estão pasteurizados pelo capitalismo e sua gentrificação avassaladora, das cidades e do modo de vida das pessoas. Segurando a tentação de não classificar comidas, lugares, habitações e costumes como “isso daqui é brasil raiz”, faço uma viagem dentro da viagem, olho pra dentro e afirmo: brasil profundo somos todos nós.
Moro na maior cidade da América do Sul e na mais populosa de todas as Américas. São Paulo é a cidade que todos amam odiar. Criticar suas lindas vistas compostas de prédios – que se fosse em NY chamaria skyline – e do céu sempre pintado duma camada cinzenta esfumaçada por cima do horizonte alaranjado. Sem muitas estrelas e com muito barulho, é claro que viver por aqui não é nem de longe asmil maravilhas. Entre muitos desafios, durezas e ameaças à saúde, enxergo muito do <brasil profundo> no dia a dia da cidade. É raro, juro que é raríssimo ouvir aquele sotaque do famigerado faria limer. Claro, não trabalho naquelas imediações e não tenho amizades pelas bandas de lá, mas resumir a cidade àquele estereótipo é uma ofensa a tantas milhares de pessoas que cruzam os meus dias com outras cores, outros tons e sabores. Dificilmente volto pra casa sem uma observação curiosa ou uma novidade. São Paulo é surpreendente porque ela é feita de pessoas, pessoas profundas.
Toda saída de casa me lembra essa nossa <brasilidade>, seja lá o que for a sua definição pessoal. O modo como nos comportamos nas filas, na maneira como nossos corpos se deslocam no espaço, na comunicação rápida e eficiente que combina palavras, sons e gestos, as pinturas de propagandas nos muros, o prato feito de almoço em qualquer esquina… Isso que tentamos encapsular em imagens e narrativas e que falhamos ao tentar, por exemplo, contar para um gringo como é que as coisas funcionam <do lado de cá>. Até porque, no final das contas, estamos tentando também explicar a eles como é que a gente funciona. Enxergo que o brasil profundo está também nesse modo de construir essa auto-imagem, perseguida intensamente por poetas e artistas modernistas no começo do século passado e que, ao meu ver, segue em pleno vapor: o Brasil é algo a se fazer, inconcluso e indiscreto, profundamente inventivo e desamparado, inventor das melhores e mais bonitas gambiarras, detentor dos sucos puríssimos de amor, humor e pavor.
Claro que este recorte é meu, personalíssimo, e que você tem mais do que o direito de discordar. Neste texto, exercito minha obrigação de desdobrar meu olhar, me afastar dos naturalismos e evitar armadilhas, mas… é um texto. E ele não se faz no vácuo. A intenção dos detalhes não é prévia, digito essas palavras em tempos distintos e aguardo sua fermentação. Dito isso, também sei que sou inescapável de mim, desse cenário limitado de onde produzo o texto. É tempo de procurar ajuda, abro um livro em busca de abrigo:
Um texto não surge no mundo embalado a vácuo. Quem escreve também não vive em uma bolha encerrada em si mesma, sem acesso ao mundo “exterior”. Isso significa que somos, todos os dias, “alimentados” das mais variadas percepções, imagens que nos impactam ou trazem singeleza, toques, encontros, risos, horror, lágrimas. Todo o conjunto de experiências que compõem a vida de cada um de nós nos constitui e contribui para o processo de escrita (p.35).
Em Escrever sem medo, Jana Viscardi nos socorre de braços abertos. Em geral, não tenho <medo> de escrever, mas seria ingênuo dizer que sou isenta de receios e inseguranças. Escrevo, publico e me arrisco com certa facilidade, o que em absoluto não significa que ele, <o texto> está pronto, em sua melhor e maior forma. O texto é uma forma fluida, mutável e arbitrária. Nas palavras de Jana, (…) o que fazemos enquanto estamos escrevendo é testar possibilidades num universo de recursos possíveis (p.63). Essa edição é recheada desses testes, é uma mistura de anotações que, costuradas, ensaiam uma conversa – e que pode, na sua leitura, não dar <samba>. Nestes momentos, volto aos meus objetivos de escrita e me lembro que o compromisso é com a experimentação e insistência no texto.
Talvez minha característica mais profundamente brasileira seja a teimosia. Sou grata, como no meme, por nascer latinoamericana e acredito que faça mesmo uma <diferença> interessante na maneira como encaramos e sobrevivemos às intempéries da vida. Talvez seja isso que recortamos da realidade quando classificamos algo como <brasil profundo>. A gente bate o olho e se conecta, intensamente. Minha teimosia tem me levado a alcançar cada vez mais pessoas através do texto. Insisto na lapidação da palavra, na costura de ideias esquisitas como o tema da conversa, uma vez por semana. E a cada sexta-feira, chegar na intimidade de várias pessoas, porque “a escrita se consolida no exercício – e não na inspiração imediata” (p.165). O texto, que era sobre Brasília, chegou ao fim sendo sobre eu e você.
Jana Viscardi estará n’A Escrevedeira com seu curso ESCREVER SEM MEDO presencialmente! Nele você vai explorar uma compreensão renovada dos elementos essenciais que compõem a estrutura de todo e qualquer texto, seja um romance, uma dissertação, um conto ou um e-mail de trabalho. Partindo da questão de como nos preparamos para produzir nossos textos, Jana propõe uma série de conversas e exercícios que visam a desmistificar os caminhos da escrita, seja ela ficcional ou não-ficcional. Com o cupom TESCREVO10 você tem 10% desconto (em todo o site também!).
Datas: 21 e 28 de agosto, quartas, das 18h30 às 21h30. Informações aqui!
Drops:
Três pré-vendas de pessoas queridas:
- e seu novo livro de contos Quase Agora
- e o romance 108
Elaine Resende e o infantil A princesa dourada e o mandacaru mágico
Estarei na 2ª FELITA - Feira Literária de Itaquera que acontece dia 10 de agosto a partir das 09h no Centro Comunitário CIFA (R. Flores do Piauí, 170, Itaquera). Estarei no Caixote do Autor às 13h30 na companhia da amiga
e de Israel Neto. Vem me ver e trocar ideia? Mais informações aqui.Brasil Profundo em alguns vídeos que salvei no Instagram: o que sempre me alegra; Marina Silva no microfone; a genial Adênia Chloe; palavras angolanas do português brasileiro; a gigante Benedita da Silva nos anos 1980; a praia da Costa onde cresci; poetas brasileiras na China; um desafio na 25 de março, um homem que dança e um professor carioca ensinando história geral.
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Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Achei seu olhar sobre são paulo e brasileiros no geral extremamente gentil, algo raro porque tendo a acreditar que <o brasileiro> adora criticar o Brasil ou pedaços dele. Gostei muito do fluxo, forma e sentimento do texto!
Que forma bonita de ver SP! Deu até saudade da minha cidade...