Se os últimos momentos da vida pudessem ter trilha sonora, eu sei exatamente música me embalaria dessa para melhor: Moonlight serenade, de Glenn Miller. Faz um tempo que quando ouço essa música, a vida começa a passar em outro ritmo, de repente as cores se tornam amareladas e pálidas e sou arrebatada pelos meus cheiros preferidos: café quentinho, patchouli, lavanda e colo de mãe. Nesse cenário sensório, vou em paz para a eternidade.
O último mês do ano costuma ser dolorido, uma série de acontecimentos aniversariam em dezembro e, de certa forma, suas lembranças me puxam pra perto de versões antigas de mim que já não são confortáveis de visitar. Estar na cidade natal e viver por uns dias perto dos totens da minha vida antiga também ajuda a remexer nas caixas empoeiradas da memória. E como uma boa parte da população capixaba, sou alérgica, rinÃtica, bronquÃtica. São atchins durante o dia e um peito pesado a noite, que antes de dormir, remói coisas que já não importam mais.
A despeito dos incômodos ruminantes, estou à beira mar, onde me criei destemida das profundidades ou correntezas. É verdade que o tempo trouxe histórias e mergulhar depois elas me fez uma caiçara diferente, reticente e por vezes, medrosa. Nesses dias por aqui, caminho a beira d’água deixando que as ondas quebrem contra minhas pernas e me temperem com areia e sal. Demorei uns dias na beira, até finalmente me autorizar ao mergulho aguardado por meses. E foi a coragem dum menino que me abriu o caminho do mar. Quase sempre estou sozinha na praia, e por isso, avalio com ressalvas a possibilidade do mergulho. Respeito as forças da natureza, entendo seus limites e experimento no encontro com eles, os meus. No dia em que finalmente mergulhei, havia caminhado por uns minutos, curtido a pele ao sol, sentido vento no rosto. Avisos em etapas: estou viva. O vento embolou o cabelo, trouxe respingos das ondas ao meu rosto, grudou pequenas areinhas na pele suada. Na beira mar, o mergulho do menino me disse: você está pronta. Mergulho. Mais uma etapa que reafirma: estou viva.
No episódio Avis rara, do podcast Radio Novelo Apresenta, que ouvi antes do natal, temos a história do chester, aquele bicho polêmico criado nos anos 1990 para competir (!!!) com o então rei do natal, o peru da Sadia. Apesar da mea culpa que o episódio faz sobre a exploração dos animais na indústria alimentÃcia, senti falta de questionamentos contextualizados em 2022. Contar histórias não pode ser a-histórico, sendo História, história ou estória, tudo tem cenário. Sacrificar um animal em rito religioso como o Natal não é natural, é cultural. E foi exatamente esse o motivo que criamos uma super galinha, como o chester, para dar continuidade aos nossos rituais, à s coisas que vamos enchendo de significados inventados, sem se perguntar o que estamos fazendo desse mundo que pouco nos pede, além de deixá-lo viver.
Numa troca sobre vegetarianismo, veganismo, grécia antiga e o textos sagrados,
e conversam de maneira Ãntima e pessoal também sobre rituais, hábitos, começos e fins. Sobre como é impossÃvel, irresponsável e raso a tentativa de separar/tirar as coisas de contexto, ou seja, fazer da história, a-histórica. Estive no Museu do Amanhã recentemente e numa das obras da exposição permanente, li uma previsão na linha do tempo para daqui - hoje - até cinquenta anos a seguir. Se tudo der mais ou menos certo, ainda estarei viva - mas num mundo quase morto. Ou também um mundo vivo, com tudo dando muito errado. ‘Talvez não toque Moonlight serenade’, pensei e deixei cair algumas lágrimas, de coração apertado. Ainda bem que depois do museu teve final da Copa e alguns latinoamericanos estiveram felizes e eufóricos por horas (eu também). Afinal, todos os rituais importam, do mergulho na praia, passando pela invenção do chester e uma troca de cartas virtuais, chegando a noite do dia 31 de dezembro, onde apertamos o reset e esperamos com lágrimas e risos, por um ano melhor.Talvez seja verdade que a tartaruga não é derrotada nem mesmo pelo mais rápido dos heróis. Recorrer a experiências que formem, que me façam crescer, colecionar fracassos a fim de tirar algo deles, acumular primeiro notas no histórico e depois no currÃculo, sofrer por amor prometendo-me que não vai mais acontecer assim, colecionar sucessos e desilusões, entalhar uma nova marca em minha experiência no mundo, aumentar com outra página a minha biografia - em resumo, pensar a vida como um progresso contÃnuo e obrigatório, uma resposta ao dever de crescer e se aperfeiçoar - de repente me parece apenas uma distorção, uma estranha ilusão de ótica.
Porque esse hábito de capitalizar o tempo me tornou mesquinha, insensÃvel à perfeição dos instantes. Pois considerei frustrantes os momentos de imobilidade, de silêncio, os momentos inúteis; pareceram-me desperdiçados e, ao contrário, talvez fossem os mais verdadeiros.
Talvez fosse nos momentos em que a flecha permanecia imóvel, suspensa no ar, sem ir para lá nem para cá, que o tempo se revelava para mim como aquilo que era, eu teria entendido, então, se tivesse pelo menos ousado olhar, que os momentos compunham-no como pérolas que compõem um colar. Mas eu não quis agarrar os instantes um após o outro, rindo como quando se come um punhado de cerejas; mas eu podia, eu devia tê-los agarrado, em vez de correr pensando no alvo, em vez de desejar a velocidade de Aquiles. (Ilaria Gaspari - Lições de Felicidade)
Que possamos estar mais sensÃveis aos instantes: viver, sonhar e inventar. Que seu colar de pérolas seja recheado de momentos desimportantes, intensos, disruptivos, esquecÃveis: de tudo é composta a vida. Chegar aos fins me deixa com uma sensação parecida ao andar na beira d’água antes do mergulho. Demorei, mas entendi que minha reticência é também medo de não dar tempo de viver e contar histórias, como essas que costurei no texto de hoje. Obrigada por estarem mais um ano lendo as groselhas açucaradas que envio com carinho. Sou escritora porque sou lida e 2022 passou a régua nessa dúvida. Estou viva e ainda não é o fim. Ouvi Moonlight serenade para editar esse texto, com as ondas do mar batendo ao fundo.
Essa é a última carta de 2022. Ano que vem teremos novas aventuras e se você quiser me falar qualquer coisa sobre os textos - perguntas, mensagens, sugestões, elogios, etc - deixo meu curious.cat abaixo. Tô copiando a ideia da Vanessa Guedes na cara dura, porque achei uma ótima estratégia.
A mensagem é anônima, fique à vontade. Pode tudo, só não pode perder o respeito.
Se você gosta do que eu escrevo, considere apoiar meu trabalho. Caso queira mandar um mimo de final de ano, aceito pix em oi.pmescreve@gmail.com
um abraço & feliz 2023: amar sem temer e partir se precisar.
paulamaria.
Uau, que texto. Li tudinho 2 vezes. Me emocionou muito. E esse trecho de Felicidade que vc trouxe, socorro!!!! Me sacudiu aqui!
adorei o texto e as referências! também ouvi o podcast sobre o Chester e concordo com a crÃtica, na velocidade que as coisas são hoje, muitas vezes o contexto se perde e precisa ser o tempo todo relembrado.
Gostei muito da citação também, tenho pensado muito nisso ultimamente.
Feliz 2023 <3