A persistência da memória
⏳você/fumando/de óculos/exerce seu direito/inalienável/de não mais pensar/em mim (São Paulo, poema de Ana Martins Marques)
A memória prega estranhas peças, diz uma frase na zine “concessão nenhuma”, que publiquei em outubro do ano passado. Por vezes, penso que me lembro de absolutamente tudo, que nada escapa à minha memória de elefante: os pesos de observar, sentir e registrar demais. Por outro lado, existem os dias nos quais me sinto totalmente enuveada, a cabeça funcionando como um episódio de seriado quando a personagem avança e retrocede na própria história tentando compreender quem é no presente – isso se conseguir se sentir no presente. Há dias e dias. Memórias e memórias.
Gosto bastante dum texto do Freud chamado “Recordar, repetir e elaborar”. Nele, o véi Freud nos ensina como funciona, em resumo, o processo terapêutico da psicanálise. O fantástico desse texto é que ele é realmente fácil de ler, tenho poucas indagações sobre o jeito Sigmund de escrever no geral e nele tenho apenas uma ressalva (se você ler, comenta comigo?). Abaixo um destaque que uso bastante com as pessoas que atendo. É comum ouvir “Paula, você não deve aguentar mais eu repetindo as mesmas coisas”. Abro um sorriso só de digitar essas palavras e emendo: esse é meu trabalho, recebo a sua vida com muito carinho e sei que ela não é apenas isso que você me traz. O que também estou dizendo é: ouça o que está me dizendo, porque não é só para mim que dizes.
(o paciente)* também repete todos os seus sintomas durante o tratamento. E agora podemos ver que ao destacar a compulsão de repetição não adquirimos um novo fato, mas uma concepção mais unificada. Para nós se torna claro que a condição doente do analisando não pode cessar com o início da análise, que devemos tratar sua doença não como assunto histórico, mas como um poder atual. Essa condição doente é movida pouco a pouco para o horizonte e o raio de ação da terapia, e, enquanto o doente a vivencia como algo real e atual, devemos exercer sobre ela o nosso trabalho terapêutico, que em boa parte consiste na recondução ao passado. (Sigmund Freud)
*inclusão
Na literatura não é diferente. A memória também prega peças nas personagens e em quem lê. Dificilmente saberemos se o que está sendo relatado é o que aconteceu, se é uma versão revivida daquele acontecimento, se é uma invenção para lidar com as dificuldades da vida. Somos também personagens dos livros que lemos, ativos e necessariamente alteradores e co-construtores da narrativa. Não confie no narrador – e nem na sua própria personagem. Besta é quem não acredita. Deixo aqui a “esquecida” (?) Aurora, de uma das mais queridas leituras do ano passado:
Faz quase quarenta anos e o som é o mesmo, a risada, as patas de cachorro no piso, os pratos e talheres saltando das minhas mãos arrebentando no chão, o resto não importa narrar à Rosa que ela já deve saber o que é perceber que um filho está morto , esse instante vertiginoso em que alguma coisa de ferro tomba por dentro e parece que não é possível que estaremos vivas no próximo segundo, e no entanto chega o próximo segundo e infelizmente continuamos ali, segurando o filho morto, e o próximo dia, e o próximo Natal. (Mariana Salomão Carrara em “É sempre na hora da nossa morte amém”)
Excesso de memória ou a total escassez dela convive em todos nós, num jogo singular da existência que pressupõe qual tabuleiro é nosso alicerce inicial, quais os outros peões que nos cercam e como o dado da vida é jogado a cada rodada – não se engane, mesmo com toda a aleatoriedade inerente à vida, existem destinos difíceis de burlar, não dá para roubar em todas as regras do jogo e ainda que o destino final seja o mesmo pra todo mundo, não é do mesmo jeito que a gente chega lá. A essa altura do jogo, eu espero do fundo do coração que você já tenha entendido isso. Vai te poupar um tanto de sessões de análise, cabelos brancos, dentes rangidos e noites insones. Confie no processo, não dê ouvidos à fórmulas mágicas, não acredite que o esforço individual traz garantias. Não há garantias.
Somente no auge da resistência podemos, em trabalho comum com o analisando, descobrir os impulsos instintuais que a estão nutrindo, de cuja existência e poder o doente é convencido mediante essa vivência. O médico nada tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem um curso que não pode ser evitado, e tampouco ser sempre acelerado. Atendo-se a essa compreensão, ele se poupará muitas vezes a ilusão de haver fracassado, quando na realidade segue a linha correta no tratamento. (Sigmund Freud)
É pela ausência da garantia que existe uma carta desse jogo que é quase impossível de fugir: no uno da vida, o +4 é o trauma. Trauma dá excesso ou escassez, nunca mais ou menos do que isso. Ou se lembra demais ou se apaga (Freud diria recalca! #somostodesrecalcades) para não reviver e não sentir-se em perigo 24 horas por dia. Ainda que a gente repita, como vimos na citação de Freud ali em cima, a gente repete diferente, repete porque precisa tentar diferenciar de si mesmo até finalmente elaborar e seguir – o que não significa melhorar, perdoar, superar. Curar um trauma é aprender com ele, aceitando que ele deixa marcas, que ele faz parte da sua vida e que não te define, ainda que faça parte do seu design pessoal, do desenho da sua psique e do seu corpo. Nesse sentido, estar em terapia se aproxima dos processos de uma escritora: a escrita é um processo mental longo.
Um dos motivos pelos quais as memórias traumáticas se tornam dominantes no TEPT* é porque a pessoa tem extrema dificuldade em sentir-se viva no presente. Se ela não consegue estar aqui de maneira plena, busca lugares onde de fato se sentiu viva, mesmo que esses lugares sejam dominados por horror e sofrimento. (Bessel van der Kolk em “O corpo guarda as marcas”)
*transtorno do estresse pós-traumático
No aulão de Monique Malcher, aprendi com ela e bell hooks que é preciso encarar nossas sombras, escrever a partir de nossos assombros. Realizar, como disse a também antropóloga Monique, uma etnografia de si. Ao encarar nosso porão – como costumo chamar em psicoterapia – nos aproximamos da nossa voz, daquilo que desejamos (com muita força, vale ressaltar) verdadeiramente dizer. Uma outra analogia com a escrita me marcou nessa aula. Monique diz que a escrita não é sobre ser navegador e desbravar mares e tempestades, mas sim sobre aprender a ser náufraga. Eu tinha recortado (juro) um navio-reboque para colar no caderno de oficinas, enquanto ouvia essa aula gravada. Quando cheguei nessa parte do áudio, dei um pulo na cadeira e pensei: mas é claro. Tudo já está aí, eu só precisava encontrar a Monique, essa aula, esse pedaço de revista nos meus recortes. Minha memória não é só minha, o tabuleiro é coletivo e viver é escrever. Como disse Waly Salomão, a memória é uma ilha de edição.
Drops:
Atingimos a meta para a feitura do livro! Oba! Ele continua em pré-venda até o final do mês, muito obrigada mesmo a todo mundo que fortalece, seja compartilhando, seja investindo o rico dinheirinho nessa escritora viva. Muito obrigada de coração!
Para escrever o trauma, a Jarid Arraes tá com curso aberto e te ensina aqui
O disco novo da PJ Harvey me lembra muito os poemas da Emily Dickinson
Maratonei o podcast documental Nenê da Brasilândia, produzido pela Rádio Novelo - que sou fã e fanfico conseguir pelo menos estagiar um dia. A
é uma das produtoras e me deu um abraço depois de me ouvir tietando no evento Cabiria, nessa semana <3 Assinem a newsletter dela, a , que indica podcasts! (sim, a voz de todas elas é maravilhosa também ao vivo!)Lembrando que os links para livros do post te levam diretamente para a página da Amazon, que me dá uns trocados de volta pela indicação. Você pode comprar qualquer produto navegando através deles ou do link da página inicial aqui. Agradeço o troquinho, ajuda pra caramba :)
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um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Amei o texto. Eu gosto muito de ler Freud porque eu acho que ele escreve muito claramente, e gostei muito de ver a costura do texto dele no seu, e todas as reflexões que você construiu em cima. É um tema sobre o qual venho pensando bastante e é sempre muito enriquecidos ver o que outras pessoas estão refletindo também.
Eu reconheci o primeiro recorte Ghibli como Castelo Animado, mas estou em dúvida se o segundo é viagem de Chihiro. Gostei muito do texto, me sinto menos mal pelas coisa que eu fico repetindo de novo e de novo, seja na minha cabeça, em conversas ou na arte. Tinha mais coisa que eu queria dizer, mas no dia que li o texto a internet travou e eu... esqueci. Achei tematicamente apropriado kkkkk