Sobre sentimentos e a sombra
Dentro de um casaco marrom, respirando sem interesse, ninguém interessado nela, ela não interessada em ninguém. (Clarice Lispector)
Mastigo amoras lentamente, pensando no inimigo em pedaços, servidos numa bandeja de prata em noite de pompa e circunstância. É outubro, tempo de desenterrar demônios e celebrar à luz da lua. As amoras mancham os dedos e deixam rastros de sangue espesso, mas dessa vez não sou eu quem sangra. É delicioso sentir a garganta desengasgada, livre, pronta para o uivo à beira do abismo: agora eu não caio mais.
Desatino a escrever, sentada à escrivaninha na meia luz de uma vela já pela metade. Um incenso de sal grosso, uma xícara de chá com leite e mel e um cigarro mentolado me acompanham. Faz frio e visto meu melhor suéter, tricotado pelas mãos de minha mãe, décadas atrás. Corro as mãos pelo papel sem dificuldade, não há vigia ou carrasco para palavras que desenho com tinta preta. Descrevo sentimentos, cenas, desejos: tudo sem pudor, tudo como sempre imaginei.
Chafurdo os cantos mais empoeirados de minhas memórias e sei que deste mato sairão cães chupando manga, pássaros desgovernados, crianças más, irmãs desobedientes, meninas travessas, insetos traiçoeiros, mães que fogem com o circo e avós que odeiam envelhecer. Não temo, não me assusto, não dou passos para trás. É tarde demais porque demorei demais. Preciso desembestar e abrir essas janelas, antes que emperrem sem ver novamente alguma luz.
O caos me excita e me puxa para o centro. Quanto mais escrevo, mais fico perto dos perigos que evitei com muito custo e que, enfiando inúmeras distrações, ficaram a uma distância segura durante tempo demais. Bobagem sem sentido: mal sabia eu que todo esse controle, todo esse poder da evitação só produziu submissão, e não liberdade. Evitando beber das águas dos sentimentos feios e suas expressões, quase extingui o que mais me fazia humana. Sem olhar meu lado mais obscuro não seria possível plantar grão algum para o futuro. Eu sou e não sou, essa é a harmonia possível.
[Flutuar
Fugir
Futucar
Fascinar
Fabular
Foder
Ficar
Fundir
Falsificar
Faiar
Farejar
Fecundar
Fingir]
Pausa. Depois de preencher folhas a fio, sem quase respirar, pito o cigarro. Não demora e a pressão cai, assim meu ritmo desacelera forçadamente. Já não tenho amoras e o chá esfriou pela metade. Converso com meu cão, que não chupa mangas mas deita aos meus pés de barriga para cima, exibindo-se sem reservas. O cão, esse bicho que não deve e não teme, mas deveria. O cão, que confia e espera, mesmo nas piores adversidades. Olho para o cão e ele me olha de volta. Apago o cigarro pela metade. Não preciso de tudo. Posso continuar.
Estou feliz em passear nas corredeiras dos maus pensamentos, dos sentimentos sujos, dos agouros, das maldições. Satisfeita por tirar a vergonha da frente e poder evocar vinganças, encher a boca de xingamentos, e por enterrar o restante de vontade de perdão. Uma vida toda de desculpas. Faziam de mim o que queriam e o que eu queria ficava para o jamais. É tempo de basta – para eles – e de abrir as comportas – para mim. Tentativas não faltaram, mas a parede mais próxima sempre esteve próxima demais. Lembro dum poema – a poesia salva um afogado (ou todos?).
Queria ter sido a garota
que causa problemas
que não poupa ninguém
dos seus estilhaços
quando lança o copo à parede
trouble maker
Maker de Nada mais do que
Problemas
A garota
que não voltou cedo
nenhuma das vezes que te pediram
não eram ordens
[você podia ter desobedecido]
Quem havia de ter lhe interdito?
Ela mesma.
Termino. O novo livro então começou, finalmente. A história do que não é. Não há nada para salvar aqui. Superada a crise, fiz passagem para o trauma e então as palavras puderam chegar. Não quero paz, quero vingança – essa foi a melhor síntese que elaborei, depois de anos ruminando memórias em permanente azia. Penso no elefante que assassinou pessoas e destruiu uma vila onde sofria maus tratos, esmagando-os com suas pisadas. Esse elefante não sabe, mas é meu herói, meu mártir, meu guia. Sinto o gosto do fogo na minha língua de labareda e, de repente, todas aquelas coisas já não doem mais. Eu pensava que todas as coisas bonitas tinham se acabado, porque pensava que eu mesma tinha acabado – e aí continuei viva e me espantei (de novo).
Todo lugar pode ser um cenário para um crime e nem todo crime está na camada do óbvio. Então, nem toda vingança será compreensível. Organizar os espólios diante do presente e na ausência do inimigo demora mais do que se imagina. O esperto ao contrário joga a pedra e esconde a mão, disse Estamira. São duas décadas para entender seu paradigma profético, mas quando a pedra bate na cabeça, você olha para trás e entende. Bem, ao menos, eu acho que entendi.
A minha vingança se daria aos poucos. Num copo de cólera tomado aos goles curtos, num copo de cristal bonito, daqueles do bar da sala de sofás verdes. Mexo o gelo com dedos compridos e saio despejando gasolina, para pôr fogo em tudo, agora de vez.
Drops:
Sobre sentimentos e a sombra - sessões de perguntas de Winterhur a Carl Gustav Jung
O subtítulo dessa edição é um fragmento do conto O búfalo, o último do livro Laços de família, da querida Clarice
Li e assisti:
108, de
- escrevi sobre aquiFerozes Melancolias, de
- escrevi sobre aquiRobô Selvagem - no cinemas. Prepare o lenço e leve água. O PH Santos fez uma linda crítica aqui
Lançamentos:
Memórias de uma moça nada comportada, de
- Na livraria do Espaço Augusta de Cinema, neste sábado, 19/10, às 17hO dia escuro - coletânea sobre o que nos aterroriza hoje, organizado por Fabiane Secches e Socorro Acioli. Lançamento simultâneo em várias cidades, confira! Estarei em SP para abraçar
<3
escritos que falam de mulheres errantes ferozes revoltadas etc tem meu coração
Comer amoras com a blusa tricotada pela mão de outra mulher dá muito poder. Outubro chegou.
(obrigada pela leitura do “Ferozes melancolias”)