Pela manhã, ao me arrumar pro trabalho, abri uma embalagem nova de máscara para os cílios. Assim que retirei o aplicador do recipiente, fui transportada para uns 10 anos atrás. Noites de sexta feira, quando me aprontava para sair e dançar com amigos no Clube Centenário… Ah, a juventude. O frescor da caipirinha barata, os hits pop rock da época, o calor do clube, os banheiros quebrados, a entrada à r$10! Que tempo, que lembrança, que saudade.
O olfato é o primeiro sentido a ser desenvolvido no embrião. Quando nascemos, já tivemos experiências olfativas através do líquido amniótico. Segundo a ciência, a memória olfativa é uma característica tanto fisiológica quanto psicológica. As fibras do nervo olfatório fazem conexões com áreas do cérebro responsáveis pelos processos de sentir cheiro, gosto, comportamento alimentar e sexual. Apesar de termos o olfato considerado muito inferior ao comparar com outras espécies, ele é um dos principais sentidos para a nossa sobrevivência, nos salva de comer coisas apodrecidas ou perceber algo queimando ao nosso redor, por exemplo
É impressionante - e por vezes assustador - como cheiros são portadores de lembranças tão distantes e até mesmo quase esquecidas. O olfato carrega memória e, junto ao paladar, tem o poder de nos transportar através do tempo, convocando diversos sentimentos e pensamentos profundos, nostálgicos, guardados lá no fundo de nosso sistema límbico. Não é difícil pensar em cheiros comuns que trazem sensações: café sendo coado, cheiro de chuva, bolo assando no forno… Também não é a tôa o transtorno que a ausência do paladar e do olfato mexem tanto com nossa alegria de viver, quem passou por este sintoma com a Covid sabe bem do que estou falando...
As partes do corpo são adquiridas progressivamente ao mesmo tempo em que as “contrapartidas do mundo” vão sendo registradas de nova forma. (Bruno Latour)
O corpo carrega memórias porque aprende através delas. São registros sensíveis, que, quando evocados, portam lembranças e convocam o corpo a re-experienciar e revisitar situações vividas. O cheiro do mate no encontro com água quente me leva diretamente para as tardes na casa da minha vó paterna, esperando o café da tarde na mesa de mármore rosa. É batata! Todas as vezes que sinto esse cheiro, tenho novamente 8 anos, muita bochecha, com um prato de doce de mamão verde e queijo curado em mãos. Quem me dera, inclusive.
Ainda tem os cheiros que carregam memórias de pessoas. O perfume da melhor amiga, o cheiro da pele da pessoa amada, o cheirinho da colônia d’uma avó que já partiu, o sabonete do vizinho que sobe pelo vão da área de serviço do apartamento. Às vezes os cheiros nos trazem pessoas que gostaríamos de esquecer, então mesmo que agradáveis ao paladar, preferíamos deixá-los no cantinho empoeirado das lembranças. Tem os cheiros da moda, como foi na minha adolescência a febre do perfume Tati da Boticário para meninas (!!!) e o Kaiak da Natura para meninos (!!!). O tempo passou e hoje os perfumes tem menos chá de revelação em suas propagandas e se preocupam mais em nos vender experiências. E memórias. Eu particularmente adoro essa daqui.
Cheiro de gente me lembra o romance thriller do escritor alemão Patrick Süskind, publicado pela primeira vez em 1985, entitulado Das Parfum, die Geschichte eines Mörders ou O Perfume, História de um Assassino. O romance tem adaptação para filme muito boa, de 2006. O plot da história é que o protagonista, Jean-Baptiste Grenouille, tem olfato apuradíssimo, percebendo os cheiros mais diversos e até mesmo imperceptíveis ao olfato comum. Por outro lado, seu próprio corpo não produz odores - assim não deixa rastros - conseguindo ser ignorado por onde passa. Seu dom dos cheiros se torna uma obsessão e daí desenrola a história que beira o terror, drama e suspense. Não encontrei em nenhuma plataforma de streaming para indicar para vocês, infelizmente.
Revisitar minhas memórias de jovem me arrumando para dançar na sexta a noite trouxe quentinho no coração e também tristeza. Quem é de Vitória - ES entende. Um dos idealizadores dessas festas que povoaram minha juventude faleceu há dois anos atrás. Rike era uma das pessoas mais sonhadoras e animadas que conheci e sou muito grata pelo que ele pode proporcionar naquele período da minha vida. Viva Rike!
Pra terminar, me conta como você se conecta nas memórias cheirosas?
O último poema escrito por Beckett
Darei uma Oficina de Escrita dia 27/07, das 19-21h. Mais detalhes aqui
A revista a.galinha está com sua primeira chamada aberta para colaboração
A Dri Lippi vai dar um aulão sensacional chamado "há mar em nós" sobre os oceanos e tudo mais
O Lisandro vai fazer conversas abertas sobre O que é uma Narrativa e Como desenvolver uma narrativa
Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria