Em 07 de fevereiro de 2021 enviei a primeira edição da newsletter, que tinha outro nome e estava em outra plataforma. Desde então foram 153 textos, uma média de 38 por ano (e cada ano tem 52 semanas). Hoje são quase 2700 inscritos, 4500 seguidores. O texto abaixo é uma comemoração da reunião destes números. Demorou cerca de seis horas para ser escrito, mais uma de revisão e meia hora de edição final. Mas também penso que ele pode ter demorado quatro anos para ser escrito pois não sairia <desse jeito> se não fossem os anos sentada semanalmente, insistindo para a escrita sair.
Agradeço ao apoio e incentivo. Agradeço as trocas. E agradeço a mim mesma por não desistir.
Se quiser me presentear neste aniversário, o pix é oi.pmescreve@gmail.com
Vira e mexe alguém me pergunta porque escolhi ser psicóloga. Ok, com o passar dos anos a pergunta vai rareando, pois de alguma forma <ser psicóloga> se colou à minha identidade social e então é como se quase sempre estivesse ali, como se não tivesse sido uma escolha arbitrária, beirando a aleatoriedade. A boa da verdade é que não sei ao certo dizer o que me fez escolher uma profissão que nenhum conhecido exercia, que nunca tinha visitado como paciente e cuja única referência era o imaginário da cultura pop. <Ajudar pessoas> era um valor muito bem plantado pela educação católica e servil das freiras da escola e também pelos freis franciscanos da comunidade que participei na juventude. Fosse só por isso, poderia então só ter virado freira ou talvez enfermeira, professora, fisioterapeuta ou monja. O que me levou à psicologia resta como um mistério que aceito com devoção, da mesma forma que prefiro não descobrir o que há por trás dos truques de mágica. Funcionou, afinal de contas estou há vinte e um anos em formação como <psi>. Sortilégio da vida, serendipidade, bom encontro. Chame como quiser.
Acho que a coisa que mais me encantou todos esses anos é a sensação de que quanto mais eu <conheço> a experiência humana, mais percebo que há um sem fim de histórias para me ensinar algo novo. É radical, intenso e absurdo. Preciso estar em constante abertura – afinal de contas minha principal ferramenta de trabalho é a escuta – e estar aberta para o mundo não é exatamente a coisa mais confortável de se fazer. Esses negocinhos chamados <emoções> são como cavalos selvagens em pastos úmidos no lusco-fusco de nossos terrenos-vida. Indomáveis. Diferentes dos nossos sentimentos – educados, castrados, domados, medicados – as emoções até ficam latentes, mas não se esqueçam: o estado é de espera, dormência. Quer você queira, quer não: elas estão aí, bem aí, dentro de ti enquanto lê essas palavrinhas na tela.
Encontramos diversas teorias que dissertam sobre as emoções e tentam definir suas características. Podemos dizer que uma “emoção poderia ser definida como uma condição complexa e momentânea que surge em experiências de caráter afetivo, provocando alterações em várias áreas do funcionamento psicológico e fisiológico, preparando o indivíduo para a ação”¹. É explicada pela maioria dos modelos teóricos sendo composta por reação muscular interna, comportamento expresso, impressão afetiva subjetiva e cognição. Em geral também é compreendida como uma capacidade inata que é afetada pelo contexto cultural e pela história individual. Sua condição <complexa> é facilmente compreendida quando entendemos, por exemplo, que nem toda emoção é expressa do mesmo jeito, nem toda expressão corporal vai equivaler a experiência subjetiva (interna). Quantas vezes sorrimos amarelo querendo chorar? Não há consenso teórico sobre o rol de emoções, mas a prevalência nos estudos aponta para <alegria, medo, surpresa, tristeza, nojo e raiva>. Essas emoções ditas <básicas> compõem outras <complexas>, mas nem sempre dão um mesmo resultado.
Por exemplo, decepção seria a mistura de surpresa e tristeza; remorso, a mistura de tristeza e nojo; saudade, a mistura de alegria e tristeza; e assim por diante. Deve-se destacar, contudo, que nem sempre a mistura das mesmas emoções básicas resultará na mesma complexa, pois isso depende da intensidade e da avaliação da pessoa. Por exemplo, um atleta que conquistou uma vitória difícil, ao subir ao pódio, pode estar "chorando de felicidade". Isso seria uma mistura de alegria e tristeza, mas não se pode dizer que o atleta está sentindo saudade.
Em A vida secreta das emoções², Ilaria Gaspari compartilha suas impressões íntimas num misto de relato pessoal com investigação filosófica sobre emoções. Escolhe falar sobre arrependimento, ansiedade, compaixão, antipatia, ira, inveja, ciúmes, maravilha, felicidade e gratidão. Desde as primeiras páginas me identifiquei fortíssimo com a autora: “Fui uma criança emotiva, uma adolescente emotiva, e agora uma mulher emotiva. Qualquer coisa me perturba, me abala, me comove, muda meu humor. […] Guardo tudo: ingressos, cartões-postais, cupons de desconto, para tentar lembrar quem eu era, quem eu sou, pela necessidade de me manter conectada com as coisas que vivi”. Fala que somos <deseducados no discurso emocional> e que ao desconfiar das emoções, vivemos no estado de <analfabetismo> que gera incompreensão (de si e do mundo). Como psicóloga, saí grifando um monte de frases e concordando com a cabeça conforme avançava no texto.
Da teoria dos humores de Galeno passando por Homero, Shakespeare e Darwin, Ilaria constrói um arcabouço de conhecimento tecido gentilmente, sem pressa de afirmações bombásticas ou determinantes. A autora traz perguntas porque acredita que onde cresce a filosofia, cresce a literatura e onde cresce a literatura, cresce a nossa capacidade de nos construirmos como humanos. Dizer <eu> para dizer <nós>, investigar-se, experimentar-se, viver. Lembra que nenhuma emoção é boa ou má em absoluto e que nosso <autorretrato> é sempre “fragmentário, compósito, imperfeito”. Parte de conhecimentos preciosos, como a filosofia de Espinosa que defendia a experiência do afeto como primordial na construção do autoconhecimento. Conhecer para viver, essa é a função mais importante da jornada.
No capítulo sobre a nostalgia, que abre o livro, já levo uma bordoada: nostalgia, a emoção do passado doentio. Através de sua vivência universitária e da figura de Ulisses (o protagonista da Odisseia), descreve o sentimento de <retorno à casa> como aquilo que “fala à nossa parte mais misteriosa e indefinível, aquela mais próxima do coração de nossa identidade – que não tem palavras, porque no limiar do segredo de infância, de um tempo em que os pensamentos eram feitos de vagas sensações, de medos, prazeres, inseguranças”. A nostalgia toca “onde as palavras se fazem ausentes e recuperá-las é impossível, ou melhor ainda: recuperá-las estragaria tudo”. Eu, nostálgica crônica e memorialista sem recuperação, terminei essas páginas querendo bater um papo com Ulisses para saber se ele resolveu sua questão. Preciso reler a Odisseia.
Quando a autora investiga a ansiedade, navega também pelo mar da angústia. Tais palavras dividem uma mesma raiz lexical: do latim tardio <anxia>, derivado do verbo <angere>, apertar, sufocar. A ansiedade é uma agonia sem solução, “um medo sem objeto, e, portanto, sem alívio”. É uma emoção que não deixa dúvidas sobre a relação <corpo-mente> e apesar de vivermos no tempo perfeito para a ansiedade, ela é objeto de observação desde a Antiguidade. A saída deste estado paralisante é a aceitação de que faz parte da consciência da possibilidade de liberdade, das escolhas intrínsecas do viver. A ansiedade, para Kierkegaard, “é uma tentação de uma paralisia que somos convocados a vencer, transformando-a no sintoma de uma vida que se concretiza, que atravessamos autenticamente e pela qual nos deixamos atravessar”. Ouvir a ansiedade é compreender nossa imperfeição, é dar-se o direito de não estar pronta, é estar presente porque o controle não está no futuro. Estamos aqui e agora.
Sobre a felicidade, pega o gancho e disserta sobre a solidão. Para isso, caminha sobre a pandemia, ora comentando de sua própria experiência e também sobre <isso> que passamos tão recentemente e que ainda investigamos, para compreender o que de fato aconteceu conosco. Para quem esteve minimamente segura (econômica e socialmente), uma sensação era comum: culpa. As inesquecíveis imagens de sofrimento, descaso e desespero ao redor do mundo nos davam o tamanho da existência – ínfimo.
“Em um determinado momento […] viver o cotidiano, sua dificuldade, o cansaço, tivessem me concedido uma trégua de todo aquele sentimento de culpa. Não podia sustentar tal peso – ninguém pode –; e, depois, de que adiantaria? É verdade que não paguei minha dívida de sofrimento – mas, disse a mim mesma: onde está escrito que devo pagá-la agora, e precisamente nesses termos? E então tentei, com pequenas ações, com meus pensamentos, com todo o esforço que podia, tornar-me útil. Foi assim, inclusive, que nasceu este livro, entre outras coisas.”
Acho bonita e honesta a forma que Ilaria encontra para contar sobre si mesma. Ao mesmo tempo que identifica suas emoções e as expõe, consegue se conectar com quem lê. Não passamos pela pandemia da mesma maneira, mas este excerto acima me ligou a ela: é, também senti culpa e foi difícil expiá-la, mas a força motriz da compaixão – e da literatura – me fez não cair de vez em ressentimento e criei coisas bonitas, construí amizades, estendi a mão a quem precisava: quando e como pude. Assim como Ilaria, percebi o quanto sou flexível (preferia não, mas por vezes não existe escolha); o quanto quando muda <a paisagem de meus medos> posso acessar saídas possíveis. Assim, a felicidade pode ser lida como uma virtude a ser perseguida, sem fórmulas mágicas. Não é uma distração e sim fruto de um trabalho da vida, de conhecer e construir. Felicidade não é mérito, nem produto, nem status. Estar feliz é poder testemunhar a felicidade, sem ser uma espécie de <protagonista> dela: é um chamado de fidelidade a si mesma, ouvindo sua voz para se conhecer, se compreender e também deixar aquilo que se acredita que é. Sem embaraço ou vergonha, alimentar a <ânsia de existir>, sem segredo ou receita, tirar de si a mania de se desculpar pela própria alegria, tão rara e tão cara.
Nesses quatro anos escrevendo a newsletter, passeei por emoções intensas e verdadeiras. Tentei através da literatura trabalhar saídas para meus labirintos mentais, emocionais e sociais. Insistir num projeto que não tem (a princípio) um objetivo rentável ou funcionalista é insistir numa visão de mundo importante para mim. A vida que pode ser mais analógica, afetiva, manual, presente. Entre perdas e ganhos – como a vida de qualquer um de nós – teimosamente segui escrevendo, porque a teimosia é meu motorzinho principal. Alguns chamam de obstinação, tenacidade, perseverança ou coragem. Eu diria que também é um pouco de cada uma dessas coisas. O que sinto hoje, sete de fevereiro de 2025, é uma alegria de estar no mundo. Meu filósofo preferido, Baruch de Espinosa, dissertou sobre uma vida que se dedicasse à produção de bons encontros, do aumento da potência de viver e das paixões alegres – sabendo que as tristes são inevitáveis. A esse reconhecimento podemos dar o nome de gratidão, palavra tão gasta nos últimos anos. Gosto de usá-la em oposição ao ressentimento, essa coisa amorfa e assustadora que toma conta do meu coração de vez em quando. Por vezes é impossível contorná-lo, então sei que preciso organizar minha raiva, que preciso pôr ordem para não sucumbir. E quando é possível dar a volta – para isso haja amor e paciência – consigo transformar <a paisagem> e com alívio e um longo suspiro, a gratidão pode se sentar e tomar café comigo.
Obrigada, obrigada, obrigada.
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¹ MIGUEL, F. K.. Psicologia das emoções: uma proposta integrativa para compreender a expressão emocional. Psico-USF, v. 20, n. 1, p. 153–162, jan. 2015.
² GASPARI, Ilaria. A vida secreta das emoções. Trad. Leticia Mei. São Paulo: Ayiné, 2022.
Drops:
Estou lendo Falso Espelho de Jia Tolentino (amando) e enquanto aguardava a revisão dessa edição, terminei Boulder de Eva Baltasar (impactada). Em breve comento mais essas leituras.
Livros sobre emoções:
Neste mês farei a oficina Lavoura Arcaica e a escrita do amor, com Andrea del Fuego na Escrevedeira. A oficina será presencial, nos dias 21 (das 19h às 22h) e 22 de fevereiro (das 10h às 13h). Para essa oficina e qualquer outra atividade na Escrevedeira que é parceira dessa news, seja online ou presencial, tem cupom de desconto: TESCREVO10
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um abraço,
paulamaria.
Respondendo à pergunta que você fez no Notes, o fato de você ser psicóloga é algo que gosto muito na sua newsletter. Dá um tchan próprio ao conteúdo. Isso e você demonstrar erudição com uma linguagem tranquila.
4 anos de poesia e profundidade ❤️ um prazer ter cruzado com você nesse mundão da internet. Parabéns pelo marco e que venham muitos anos de palavras mais ✨