"Durante todo o tempo em que escrevi, também corrigi provas, preparei modelos de dissertações escolares, porque me pagam para fazer isso. Este jogo de ideias sempre produziu em mim a mesma sensação que o luxo, um sentimento de irrealidade, uma vontade de chorar." (trecho de "O lugar", de Annie Ernaux)
A francesa Annie Ernaux foi laureada ontem pelo Prêmio Nobel e a notícia trouxe frissom na bolha literária que frequento. Mulheres emocionadas e animadas com a celebração de uma autora tão querida e que escreveu sobre temas profundos dum jeito certeiro e simples, que toca sem muito frufru ou circunstância. Li “O lugar” numa tarde de domingo, numa tacada só, coisa muito rara em minhas leituras no mundo pós telefones-espertos e atenção flutuante. A Juliana Cunha enumerou motivos para ler Annie e concordo com todos. Essa premiação faz a gente pensar na importância do destaque da literatura escrita por mulheres, sendo Ernaux a 17ª escritora a ser laureada, desde a criação do Nobel em 1901. A lista completa das autoras é:
2020: Louise Glück (Estados Unidos)
2018: Olga Tokarczuk (Polônia)
2015: Svetlana Aleksiévitch (Belarus)
2013: Alice Munro (Canadá)
2009: Herta Müller (Alemanha)
2007: Doris Lessing (Grã-Bretanha)
2004: Elfriede Jelinek (Áustria)
1996: Wislawa Szymborska (Polônia)
1993: Toni Morrison (Estados Unidos)
1991: Nadine Gordimer (África do Sul)
1966: Nelly Sachs (Suécia)
1945: Gabriela Mistral (Chile)
1938: Pearl Buck (Estados Unidos)
1928: Sigrid Undset (Noruega)
1926: Grazia Deledda (Itália)
1909: Selma Lagerlöf (Suécia)
A gente comemora o prêmio de Annie e ao mesmo tempo fica com a sensação parabéns pelo mínimo. Em 121 anos e 119 edições do Nobel, apenas 17 foram mulheres (cis*) e dessas, apenas duas fora do eixo europa-estados unidos: uma chilena e uma africana do sul. Tenho muitas ressalvas com o papo de ‘inclusão’ porque ele pode cair no tokenismo - e na maioria das vezes é mesmo. Por outro lado, entendo também a necessidade da defesa da presença nos lugares reservados ao homem médio (insira aqui sua imagem mental e depois me conta quem você pensou?). O risco do tokenismo também traz a discussão do porquê definir a literatura escrita por mulheres como uma litetatura ‘temática’: feminista, feminina ou produzida por mulheres - e não como literatura ficcional, não ficcional, fantástica, etc - como classificamos comumente, a produção desses homens médios. Tokenismo, cotas ou qualquer outro conceito pode ser gradualmente substituído pela ideia radical de que plurarizar / “desomisar” / “descolonizar” nossas referências literárias e habitar espaços literários com mulheres não brancas, trans, com deficiência, pessoas não binárias, etc etc etc. Defender, encarando os narizes tortos e os discursos de exclusão dos homens (acredite, isso acontece!) como afirmativa ferrenha de que a ‘literatura de qualidade’ não é um conceito pré-definido, porque as referências sempre foram, veja o exemplo da lista do Nobel que por 102 vezes, foi um homem médio.
Na estante, tenho mais livros escritos por mulheres do que por homens-padrão, como uma escolha relativamente recente na reconstrução de referências. Nem sempre foi assim, os livros da faculdade e do mestrado eram quase todos escritos por homens europeus ou americanos do norte. Me livrei de quase todos eles e, ao fazer esse espaço na biblioteca pessoal, pude parar de carregar o peso dessas referências. Com as prateleiras mais leves, a investigação de novos horizontes e lotes subjetivos a capir se desenhou de maneira formidável. Quanto mais livros de não-homens eu leio, mais percebo a construção da subjetividade no ato da escrita: sobre si mesma, sobre a vida e sobre o mundo. Alerta! Não estou defendendo um essencialismo no tom desses escritos. Quem costuma afirmar categoricamente que existe ‘um outro’ é a referência padrão do homem médio: sou o centro e o resto é o outro.
Penso que a literatura produzida por mulheres e pessoas que não são homem-branco-cis-hétero não seja apenas voltada para seus públicos espelho. Diversificar minha estante é um ato ampliar a própria voz, que muitas vezes serviu de eco para vozes uníssonas e repetitivas em nossa história. Esse é o verdadeiro avanço que acredito, o avanço que produz mudança social, que produz vidas mais inventivas, mais plurais, mais cheias de possível. E com isso, celebro Annie, todas as outras 16 mulheres laureadas e torço para que nossos livros, nossos textos e nossas ideias corram mundo a fora, porque lugar da palavra é na roda!
Os livros de Annie foram trazidos e publicados no Brasil pela Editora Fósforo
O filme “O acontecimento”, baseado em seu livro, está disponível no streaming da HBO
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Um abraço e nos vemos na próxima edição,
paulamaria.
"Quanto mais livros de não-homens eu leio, mais percebo a construção da subjetividade no ato da escrita" - tenho essa mesma sensação! não é à toa que é em quem sempre se viu e sempre foi visto como "o outro" que a gente encontra a verdadeira exploração da alteridade. lindo texto 🥰