Para muita gente o ato de escrever é assustador. Nos últimos meses, nas andanças literárias pós lançamento do livro, tenho ouvido sobre isso com frequência, até mais do que esperava. Acolho com carinho as confissões de quem me lê e, por outro lado, tenho certa dificuldade em acessar esse sentimento sobre o ato da escrita. O caminho entre escrever e divulgar o que escrevemos é largo e laborioso, porém é também, gostoso demais. Escrever é ser arrebatada pelas palavras e esse arrebatamento me dá energia, força, coragem. Bem… Pensando melhor, isso tudo pode sim, ser muito assustador.
Definir o ato da escrita é uma armadilha engenhosa, complexa e até mesmo, rudimentar. Penso que escrever é o exercício de construir uma forma temporária, pois quem escreve sabe que na palavra não cabe o sentido desejado: é alívio e martírio, é prazer e desespero, é fim e recomeço. O escriba finca suas mãos num pêndulo e é a partir dele que constrói seus castelos. Catar letras que formam palavras que formam frases que formam parágrafos que viram páginas que viram textos que viram livros que viram qualquer coisa outra - imprevisível - quando alguém nos ler. Digo que a forma é temporária porque o escrever é verbo infinitivo, mesmo quando o texto está entregue, porque ‘texto pronto’ pode ser definitivo demais.
O ato da palavra é o ato da existência humana. Diz lá no versículo bíblico que ‘do verbo se fez carne e habitou entre nós’. A palavra, divina por natureza, fazendo-se a verdade entre a humanidade. Tomando a liberdade poética como escritora, me aproprio do versículo e subverto o sentido. A carne da palavra é divina porque é terrena, é substrato da humanidade, e não substância etérea destinada aos seres sem rosto, sem corpo, sem pegadas. Acredito piamente que a carne que habito se faz - desde o primeiro pensamento de meus pais - a partir de um mar de palavras. O nome próprio, as primeiras letras no caderno de alfabetização, as historinhas no dever de casa, as poesias ruins da adolescência, as letras de música copiadas repetidamente nas cartas com amigas, os trabalhos acadêmicos, a tese de mestrado, os caderninhos de bolso, os papeis de rascunho. Um mergulho nas águas do sentido, em busca da apneia cada vez mais profunda.
"Como descrever a visão de um mundo em que tudo custa caro. O cheiro da roupa recém-lavada em uma manhã de outubro, a última canção tocada no rádio repetindo na cabeça. De repente, meu vestido prendeu pelo bolso no guidom da bicicleta e rasgou. Um drama, uma gritaria, o dia acabou. “Essa garota não conhece o valor das coisas!” Obrigação de sacralizar as coisas. E, na entrelinha de qualquer comentário feito por alguém, ou até por mim, eles enxergavam inveja e comparação. Se eu dizia, “uma menina foi aos castelos do Loire”, logo respondiam chateados, “um dia você vai até lá. Fique feliz com o que você tem”. Um sentimento de falta constante, sem fim." (trecho do livro "O lugar", de Annie Ernaux)
Encaro o exercício da escrita como uma prática plural. Espalho, distribuo, salpico e divido essa prática das palavras durante meus dias, de modo que ela sempre esteja presente. Gosto de diversificar os meios em que escrevo: o caderno, o papel solto, as notas de celular, os arquivos no computador, os textos das redes sociais… São camadas de palavras sobre mim mesma, como fossem o tecido de minha pele, cada uma com sua função própria e também com a função principal: produzir contorno ao corpo que se desloca e que produz mundos.
Produzir contorno pro corpo, buscar a própria palavra, construir uma forma temporária: modos de fazer a escrita que são enlaçados pelo tempo. Não tem jeito, escrever é também gastar o tempo. Costumo dizer em consultório que tudo o que temos em mãos é o tempo para gastar e o que nos resta é o como e o que faremos com ele. O exercício da escrita me seduz porque passar horas costurando, remendando, recortando e colando sentidos me dá um prazer esquisito, algo como médica e monstro. Me misturo com essa bricolagem das palavras porque eu sei que também sou feita de pedaços.
desperdiçar um sentido
quando os elementos
entram em entonação, ritmo, gesto
é uma aproximação
é a limitação
do próprio vocabulário.
palavra se escreve
também
com os olhos.
Se a palavra faz a nossa carne e se ela precisa de tempo, que tal assistir um monte de gente interessante falando sobre isso? Em novembro, mediarei uma mesa no evento O Texto e o Tempo, para quem lê e escreve newsletters. A programação está maravilhosa e você confere aqui. Participe e divulgue!
Outro convite que deixo a vocês é o Literoutubro, proposta minha e do Lisandro na nossa querida Toranja (minha outra newsletter!). Inspirados no inktober, criamos nossa própria lista de provocações e montamos o desafio pros amantes da palavra. Participe!
No mais, uma boa eleição para nós. Na torcida por dias melhores - ou um tiquim menos dolorosos. Se cuidem. <3
Um abraço e nos vemos na próxima edição,
paulamaria.
amei muito a reflexão sobre a escrita, Paula <3 lindo texto!
🤍