Não gosto de justificar a ausência de novas edições da newsletter, afinal, parece que o exercício gostoso de escrever toda semana vira mais uma das infinitas coisas na lista de obrigações da vida de uma mulher autônoma que já tem coisas demais para fazer. Nesta edição, começo me explicando pela ausência, mas dessa vez é diferente. O motivo da ausência deve ser tema de alguns textos em sequência, mesmo que eu não consiga organizar tão bem os blocos de escrita por aqui (a
faz isso com primor, admiro!). Vamos lá, estou de volta – ou quase.Setembro foi um mês encapsulado, hermético, labiríntico. Diria que vivi no espaço-tempo intensamente e exaustivamente e, por outro lado, ausente. Foram quase vinte dias fora de casa, circulando (ou quase flutuando) entre setores de hospital, casa de parente, passeios solitários à beira-mar e voltinhas de carro. Voltei do Espírito Santo para São Paulo no último sábado e confesso que não sei ao certo se realmente retornei de corpo e alma, como diríamos nos anos 1990. Nesses dias à deriva de minha própria vida, pensei sobre uma infinita sorte de temas e o que anda me rodeando como uma mosca insistente é ele de novo: o tempo.
Aqui
que o amor começa onde tu começas, com os pés
sobre a terra, a devorar o verbo, a sombra e a boca
que sabe à tua boca, os livros, de Adília e Rabelais
(estarei, estarei louca), em tudo e nada um canto
de sereia que, contam as velhas, dá tão-só sentido
ao sentido, e ah, assim me espanto por estar viva
(quê sei lá, sei lá onde pus a chave, tranquei-me
cá fora, que país é este, diabos, não sei, e agora)
Duas mulheres chegam ao mesmo país - Patrícia Lino
Minha avó – a última ainda viva dos pares de avós – tem cerca de noventa anos. Digo sua idade de modo aproximado porque temos, em seus documentos, três datas diferentes de nascimento: três dias, três meses e três anos. Essa senhora longeva há cerca de dez anos foi diagnosticada com Alzheimer, um adoecimento mental cada vez mais comum entre pessoas que envelhecem, de causas e origens desconhecidas e que intriga cientistas ao redor do planeta. Filmes como Para sempre Alice, estrelado por Julianne Moore e Pai, protagonizado por Anthony Hopkins, mostram como é o dia-a-dia da doença – se você não assistiu, deixo a recomendação. Enfim, com esse diagnóstico, pouco podemos acessar sobre os fatos do passado de minha avó. A data de nascimento é algo resolvido porque, mesmo antes dos esquecimentos, advindos da doença, já sabíamos a resposta mais provável… Mas e o resto?
Observando minha vó no final de sua jornada, sem escapatória esbarrei com a minha vida – leia-se toda e qualquer nóia, das microscópicas até as gigantes: todas, todinhas em cima da mesa, como um jogo de baralho com apostas altíssimas – e eu sem nenhum tostão no bolso para poder desistir e ir embora. Por mais que eu estivesse fazendo o genuíno esforço de presença no cuidado com ela, era impossível evitar de pensar nos meus dilemas, nas minhas dúvidas, nos meus arrependimentos, no meu próprio tempo restante para ~viver tudo que há pra viver~ e me permitir. Porque é isso mesmo, quem vai me permitir sou eu, mas também, pera lá, não é simples assim – looping. Como diria a grande cronista dessa rede,
: girando.Vovó costumava registrar seus dias em uma espécie de diário, mas sem muita cronologia ou apego. Alguns textos se repetem em diversos cadernos, agendas antigas, pedaços de papéis soltos, bloquinhos de congresso. O que não se parece com diário são cartas que não sei se enviou, outros textos são orações autorais, conversas endereçadas para o cara lá de cima (pra minha avó deus é homem e respeito o que ela acredita). Queria saber mais desses textos, dessas cartas que não sei se enviou, dessas confissões que nunca a vi escrever, mesmo quando morei por dois anos com ela. Queria perguntar mais coisas, muitas de verdade, mas hoje ela não consegue me dizer. Por outro lado, nesses dias de longuíssimas horas ouvindo sua voz de cordas vocais cansadas, tive acesso a outras histórias, outros jeitos de narrar suas memórias, seus desejos e, acima de tudo, suas lamúrias de estar viva em 2023. Digo que ninguém tá preparado pra isso, para ouvir esse canto do quase fim. O canto para subir, que não é doce como se imagina. Fiquei com outras perguntas. Eu, as perguntas e uma vovó cansada, me pedindo, repetidamente: me leva embora quando você for?
Quais são as suas leis e quais são as minhas?
Isso sempre vai ser um segredo.
Nada funciona a não ser com faíscas.
Faíscas de cabelo no sol.
Faíscas entre remo e rio
faíscas logo antes
de dormirmos.
Kayak, Laura Wittner
Eu que sou obcecada pelo tempo, fiquei encapsulada em Vila Velha, com meu micromundo familiar por vinte dias. Mergulhei profundamente nessas águas doce-amargas do conhecido e nadei, nadei com calma e paciência, porque era isso que, senti, exigiam da minha presença por lá. Por mais que do lado de dentro eu seja frágil como uma bomba, inacreditavelmente pude contornar o destino inevitável da explosão e falar manso, falar baixo e ter braços fortes (obrigada por tudo smartfit). Pude segurar minha avó nos braços, assim como ela o fez quando eu fui um dia uma bebê. Que coisa maluca é pensar que fomos, cada pessoa aqui que me lê, um pequeno ser bebêzim no colo de alguém–- se você teve sorte, no colo de uma avó. Incrédula nessa skin estranha à mim mesma, confiei no presente, arrastei todos os pensamentos pro lado e fiz passagem para os objetivos do cuidado: estar presente. Nada é mais mindfullness do que a economia do cuidado. Pena que não traz paz de espírito nem aumenta a produtividade. A cultura do cuidado esmaga individualidades. E minha vó, logo ela, como muitas, nunca quis dar trabalho para ninguém. Isso não é possível, isso é injusto e isso é cruel.
Dia desses, um vídeo com essa temática viralizou nas redes de imagens. Até pensei em compartilhar, mas poderia parecer passivo-agressivo da minha parte, quando eu precisava era ser agressiva porque a cultura do cuidado exaure, esmaga, destrói. Um vídeo compartilhado com um comentário no stories não vai atingir as pessoas com quem eu gostaria de gritar e dar uns pescotapas. Quem já adoeceu na vida sabe exatamente quem parou tudo (ou quase tudo) para te cuidar. E dentro da minha família, é claro que quem cuida são as mulheres. Uso aqui mulheres porque nesse núcleo familiar não temos pessoas não binárias ou outras denominações de gênero. Então as figuras de cuidado são femininas… Mas poderíamos dizer, generalizando, que as figuras de cuidado não são homens cis. Ainda que eles estejam ali, rondando, como moscas.
O tempo, o tempo, o tempo. Saindo da cápsula dos vinte dias de setembro, me ejetei de volta para São Paulo e sinto que preciso de uma quarentena, como uma astronauta antes de re-habitar a própria vida. Escrevo essa news sabendo que me exponho a cada linha, mas não quero escrever escondida em agendas antigas esquecidas na gaveta. Não preciso ter vergonha de minhas palavras e nem da história que me traz até aqui, com condições de segurar minha vó nos braços. Um outro jeito de subverter o tempo é tentar encapsulá-lo nesse texto, nessas linhas, nesses devaneios. Aqui também te levo, vó. Levo para onde a senhora quiser e eu puder.
Drops:
No próximo final de semana (12 - 15 outubro), estarei na Festa Literária Internacional da Mantiqueira - FLIMA. Na sexta feira, 13/10, às 11h, faço a roda de conversa “As crônicas se mudaram, mas pra onde?”. Se estiver por lá, passa pra gente bater papo?
O projeto Adelaide da
sobre sua vó é uma das minhas coisas preferidas da vidaSe você usa agendas/planners, fiz um fio com indicações
Estou com agenda aberta para leitura crítica de poesia e contos!
Meu livro novo, Caminhos curtos para caracóis, chegou da gráfica e você pode comprar diretamente comigo. Mande sua mensagem lá no meu instagram?
Sou parceira da
, minha primeira parceria literária! Em breve, os livros da editora em meios aos meus devaneios, aguardem!
um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Que lindo, Paula! É um privilégio conviver com pessoas idosas, o tempo passa diferente para eles, o tempo é diferente para eles. E para nós, que somos de outro tempo, é como visitar um novo mundo.
"Não preciso ter vergonha de minhas palavras e nem da história que me traz até aqui, com condições de segurar minha vó nos braços."
A beleza disso aqui.