Em espanhol, sobrevivência se traduz em superviviencia. A sonoridade dessa palavra me provoca, sinto uma fagulha de vida percorrendo meus poros, quase um arrepio fonético. Procurando no dicionário português-br, descubro que supervivência é sinônimo de sobrevivência e ambas tem origem etimológica no latim superviventia. Acho que às vezes esquecemos que somos línguas irmãs, civilizações irmãs… Um continente colonizado, com histórias que caminham lado a lado, mesmo que hoje não enxerguemos muito. Afinal, por que o Brasil não parece latinoamericano? Dia desses, no grupo dos Valekers, rolou uma conversa muito interessante sobre limites geográficos e mistura/confusão de culturas. Cito aqui ipsis literis a querida Maria Carolina com sua contribuição intrigante:
em linguística histórica existe um conceito chamado adstrato, que é quando línguas distintas convivem (principalmente por questões geográficas e políticas) numa determinada região, influenciando e sofrendo influência, mas sem sobreposição. Português e espanhol são exemplos clássicos, mas na formação do nosso idioma tb tem o exemplo árabe na Península Ibérica. Eu acho muito bonito o termo que o Câmara Jr. usa para explicar o fenômeno: "manancial eterno de empréstimos".
Supervivência pode ter sido um desses empréstimos sem agiota que fazemos na construção da linguagem brasileira. Mas tem uma palavra desse manancial que pouco nos aproveitamos dela: latinoamericana. Na memória afetiva, a primeira voz que aparece é a de Belchior, seguido de outra imagem-voz, dessa vez com sotaque uruguaio, que me sussurra mentalmente a frase: “yo soy latinoamericana”. A ausência da persistência dessa palavra tão definidora para uma mulher brasileira me faz tentar recordar com qual sotaque comecei a aprender espanhol, mas falho no esforço. Talvez tenha sido através das baladas românticas de Julio Iglesias, que meus pais ouviam bastante quando eu era criança. O primeiro sotaque é ibérico, longe de ser latinoamericano, apesar de seu sucesso estrondoso por aqui, Julio é madrileno e foi jogador de futebol (!!!). Apesar da similaridade do espanhol com português, eu pouco entendia o que ele cantava mas ficava com a impressão do romance e da sedução, provavelmente mais por conta das fotos sensuais de Julio do que pelas músicas em si.
Lembro da época que o ensino de espanhol chegou à escola regular. Sempre fui estudei em escolas particulares e no colégio da época começamos a aprender espanhol na sétima série, que hoje equivale ao oitavo ano. Era 1999, eu tinha 13 anos e o mundo estava com medo do bug do milênio. Mal a gente sabia que ele ia demorar uns 20 anos pra chegar e que se chamaria na verdade de covid-19 e seria um vírus fora dos computadores. Quem viveu sabe.
Muitos reclamavam das aulas, tratavam mal os professores (nada de novo) e o descolado era aprender inglês (mas todo mundo reclamava também). Concomitante as poucas horas de estudo na escola, eu treinava meu vocabulário ouvindo música latina na tv a cabo. Sou geração MTV da época que ela era um canal de música e não de reality shows sobre relacionamentos. Tive a sorte de ter acesso à TV por assinatura naquela época que a internet ainda era discada e só podia conectar depois das 21h. Na finada Directv, além da MTV Brasil, era possível assistir à MTV Latino, que me fazia passar tardes inteiras com bandas que jamais poderia ter conhecido e ainda podia ver os lançamentos internacionais ainda antes do que na MTVBr. Estreia, música internacional, TV, vídeoclipe. Outro mundo, outra era.
Vinte e poucos anos se passaram e não é incomum ouvir que a língua espanhola é cafona . Isso me intriga demais… Meu aprendizado com o idioma não se estendeu muito além da escola e dos estudos autodidatas, mas sinto que tenho um nível de compreensão muito bom da língua, talvez pelo gosto que tomei em ouvir artistas latinos além Shakira. Ouvi num podcast que essa pretensa cafonice do espanhol pode ser uma das razões pelas quais a gente aqui no Brasil não se identifica tanto com o continente e com nossos hermanos. Bem verdade que nossa extensão territorial poderia ser tranquilamente um continente à parte, além do fato da colonização portuguesa ter ficado com o quinhão do lado de cá. Mas o que afinal faz com que a gente renegue tanto a latinoamericanidade? Ou melhor: quando nos identificamos com ela, atropelamos as outras culturas e enfiamos a bossa nova e a tropicália goela abaixo sem mesmo pensar em outra coisa. Nem na nossa própria história pregressa à colonização...
Ainda sinto um enorme vazio quanto à nossa aproximação cultural com outros países do continente. Pretendo dar um rolê Uruguai - Argentina quando o mundo voltar a ser passeável. Até lá, sigo nas investigações afetivas, artísticas e poéticas desse continente que é o verdadeiro norte.
O grupo dos Valekers é uma cortesia Aline Valek para assinantes do seu apoia-se.
Duas artistas brasileiras que resgatam a latinidade em seus trabalhos: Pri Barbosa e Andrea Orue.
Se quiser conhecer um pouco sobre a história do rock latinoamericano, indico o Quebra Tudo, documentário disponível na Netflix;
Uma playlist em construção: Xo soy LatinoAmericana. Aproveita e me segue no Spotity também.
Junho é mês do meu aniversário. Se quiser me pagar um café, pede meu pix. :)
Um abraço e nos vemos na próxima edição,
paulamaria.