Medidas de tempo:
átimo
instante
logo mais
ainda agora
rapidinho
pisquei e perdi
demorado
atraso
um flash
num pé e volta noutro
nem molhou o bico
A matéria mais antiga no pensamento humano é o tempo. Digo isso com toda certeza, de boca cheia, sem arredar os pés para trás: o tempo é nossa maior obsessão. O tempo, essa coisa sem forma, gosto ou cheiro, que atropela todas as criaturas e objetos, sem dó, escolha ou piedade. O tempo, tema que pauta ficções e não ficções, que disputa todo tipo de narração, que finge que pode ser capturado por sequências de palavras – de acordo com a regência verbal da gramática, para a garantia do sentido. Hoje pela manhã me debrucei sobre newsletters atrasadas em leitura, que me aguardavam na caixa de entrada. Calmamente tomando meu café da manhã, como não houvesse compromisso no dia que se abria, escolhi, pincelando os dedos na tela do tablet, edições com títulos convidativos. E todas – todas mesmo – dissertavam sobre o tempo. Sendo mais justa com minha própria seleção, as newsletters falavam sobre fins, morte, rompimento da coexistência. Algo que de repente – ou nem tão de repente – não está mais. Uma quebra nele, no tempo.
Talvez o tempo não seja a nossa maior obsessão, mas a minha. É fácil jogar para a primeira pessoa do plural responsabilidades que devem ficar na primeira do singular. Fato é que não foi aleatória a escolha que fiz entre os textos apreciados nesta manhã – e nem mesmo as leituras que tenho feito no último mês. Devorei, em sequência, três livros que me trouxeram uma skin de arqueóloga, do tipo que caça nas palavras de outrem aquilo que eu mesma, quase desesperadamente, quero encontrar. Afobada e esfomeada, cada página parecia me acelerar, pedir mais, exigir mais… Diante de uma obsessão, é complicado ter atenção à desmedida. É como se eu estivesse suspensa, vivendo e tocando a realidade através de outra referência, e, perdida, ainda não sei o que fazer com tudo aquilo que me preencheu por semanas. Me sinto cheia, como um balão, voando baixo perto da superfície dele, o tempo. Quase posso tocar sua pele, sentir o seu cheiro, lamber o seu suor. Ledo engano, na tentativa, sou puxada de volta para o voo, sem destino, sem controle, sem direção.
Você como um velho, deita-se sem sono e assiste às imagens com que sabe que iria sonhar se estivesse dormindo. Dias, muitos dias, uma fila de dias a perder de vista, que caem no poço escuro e se misturam uns aos outros: você desdobra cada um deles, são bilhetes há muito guardados, e reconhece essas cores, essas formas, esses segredos. Os dias se abrem nas suas mãos e você desenha paisagens onde crescem muitas árvores, crescem frutos e montanhas: na mais alta de todas tem alguém que está subindo, que sobe cada vez mais, já está bem perto do topo. (Formas feitas no escuro – Leda Cartum)
Faltam menos de quatro meses para o fim do ano, a vida corre nessa ebulição enigmática de acontecimentos que ninguém consegue digerir – conheço cada vez mais pessoas diagnosticadas com gastrites, esofagites, refluxos e intestinos irritados (aposto que você é uma delas). A estética dos memes estapafúrdios – coloridos, absurdos e escritos em wordart – não parece nem um pouco exagerada se você prestar atenção por alguns segundos ao contexto em que eles surgem na sua telinha. Alguns segundos de atenção é tudo que conseguimos, segundo as pesquisas, cerca de onze deles. Tentei, mas não pude imaginar que outra coisa dá para fazer em onze segundos, ao mesmo tempo em que sei que devo perder diversas pílulas dessa medida por dia. Rolando feed. Hipnotizada por algum vídeo. Rolando feed. Abrindo e fechando apps sem parar, em busca de alguma serotonina perdida, sem encontrar. E… repeat!
A vida acontecia em uma profusão de coisas, de informações e de ‘especialidades’. Produzia-se opinião sobre um fato logo que ele acontecia, sobre os comportamentos, os corpos, o orgasmo e a eutanásia. Tudo era discutido e decifrado. As formas de pôr a vida e as emoções em palavras se multiplicavam, com termos como ‘vício’, ‘resiliência’ e ‘trabalho de luto’. Depressão, alcoolismo, frigidez, anorexia, infância infeliz, nada mais era vivido em vão. Comunicar as experiências e os fantasmas era um gesto que fazia bem para a consciência. A introspecção coletiva oferecia modelos para verbalizar as inquietações do eu. O saber comum aumentava seu repertório. O pensamento era cada vez mais ágil, a aprendizagem, mais precoce, e a lentidão da escola desesperava os jovens que digitavam SMS em seus celulares na maior velocidade. (Os anos – Annie Ernaux)
Annie Ernaux me trouxe uma memória há muito adormecida (alô psicanálise): o barulho das teclas do celular da minha irmã, bem na hora de dormir, mandando inúmeros SMS na velocidade cinco do créu. Dedos ágeis, nervosos, ansiosos pela próxima notificação (spoiler do meu novo livro aqui). Aquele barulho repetitivo, téc téc téc téc entrava em minha mente como um veneno, gastava minha paciência, me levava à loucura. Segundos, minutos, horas de sono perdidas: irrecuperáveis. Uma troca justa, visto o preço alto que é dividir o quarto com uma rinítica asmática em eterna recuperação (eu, no caso). Minha irmã é a pessoa com quem mais passei tempo, dividimos o quarto até eu sair de casa pela primeira vez em 2016, aos 25+. Sabemos completar frases uma da outra em pensamento – será que leva onze segundos? Acredito que não. Do lado de dentro, o tempo cronológico não tem vez, memória e invenção fazem careta e tomam conta de tudo, tudinho.
Havia o pressentimento de que, no tempo de uma vida, surgiriam coisas inimagináveis às quais as pessoas se habituariam, como fizeram tão rapidamente com o celular, o computador, o ipod e o gps. O que mais perturbava era não poder imaginar como seria o modo de vida em dez anos nem saber se nós mesmos nos adaptaríamos às tecnologias ainda desconhecidas. (será que um dia veríamos na cabeça do ser humano toda a sua história inscrita, o que fez, disse, viu e ouviu?) (Os anos – Annie Ernaux)
Assisti na semana passada a Relatos Fantasmas, o mais novo longa metragem de Kleber Mendonça Filho. Eu não tinha a menor noção de que derramaria aquele tanto de lágrimas e risos numa sala de cinema, assistindo um filme sobre cinema – claro que não é só sobre isso. Quis, genuinamente, sentar num bar e trocar uma ideia com o cara protagonista daquelas histórias. Sim, o Kleber in persona. Quis sentir o cheiro daquele apartamento de chão gelado, quis molhar as plantas de seu terraço, quis mostrar os álbuns de fotografia do armário de ferro da casa dos meus pais, quis presenteá-lo com algum bibelô de minha coleção. Mergulhei fundo nas imagens, sons e memórias que inventei, entrei quase em apneia, quase me afoguei. Ainda não entendi como voltei à superfície ou se vieram ao meu resgate com escafandro. Viajei por trinta anos numa Recife que sequer conheço, lamentei o fim dos cinemas como se lamenta a morte de alguém – como quando chorei no relato da Ana sobre a partida de Canek ou Catharina e seu pai ausente de si mesmo.
O tempo, esse menino ligeiro, que corre por entre nossas pernas enquanto preparamos o almoço. Em looping.
Os pequenos não sabem o significado do ontem, do anteontem, nem de amanhã, tudo é isto, agora: a rua é esta, o portão é este, as escadas são estas, está é a mamãe, este é o papai, este é o dia, esta, a noite. (…)
Você ainda perde tempo com essas coisas, Lenu? Nós estamos voando sobre uma bola de fogo. A parte que resfriou flutua sobre a lava. Sobre esta parte construímos prédios, pontes e estradas. De vez em quando a lava sai do Vesúvio ou então provoca um terremoto que destrói tudo. Há micróbios por todo lado que nos fazem adoecer e morrer. Há as guerras. Há uma miséria ao redor que nos torna todos ruins. A cada segundo pode acontecer alguma coisa que lhe fará sofrer de uma maneira que nunca haverá lágrimas suficientes. E você faz o quê? (Amiga genial – Elena Ferrante)
Drops:
- e o tempo que leva pra nascer um livro
- me deixou nostálgica com os cafés de vovó Mariinha
Estou com agenda aberta para leitura crítica de poesia e contos! Veja alguns concursos literários abertos e vem comigo:
Tato Literário - 1º prêmio com.tato de literatura independente
Imagens de coragem - 1ª coletânea Elas na Escrita
Prêmio Caio Fernando Abreu de Literatura 2023
Estou adorando trabalhar ouvindo sessões de vinil
Luiz Thunderbird numa entrevista honestíssima sobre dependência química
Post Malone no The Town me lembrou do ótimo tiny desk dele
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um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Que bonito e profundo tudo isso que você colocou aqui, ufa.
Essa semana o filme do Kleber tem chegado em mim de vários jeitos, todas sobre tempo: uma amiga do audiovisual disse que pela primeira vez em dez anos depois de assistir, pensou em voltar a trabalhar com cinema. Eu ando doido por esse filme (como por todos dele) e acho que só o tempo (rs) vai fazer com que eu consiga assisti-lo, com sorte, em algum momento, aqui do outro lado do mar. E obrigado pela menção 😍 Beijos!
Curiosíssima para assistir o filme do Kleber agora !