Algumas expressões ficam cansadas, gastas depois de entrarem na moda. Hoje usamos mais o termo viralização e quando algo viraliza, a possibilidade é de uma palavra ficar quase insuportável. Você consegue pensar um exemplo? Rapidamente eu cito gratidão, resiliência, lugar de fala, narrativa. Mas a lista é grande. No texto de hoje, quero eleger uma, aliás duas, que combinadas tem me incomodado bastante. Não sei vocês, mas eu não aguento mais viver num momento histórico.
No primeiro ano da pandemia, fui acometida por um luto esquisito, mas que eu lutava contra. No segundo ano, foi impossível fugir do meu mal humor e pessimismo, que contaminou a escrita, os relacionamentos e trouxe muita desesperança. Entendo hoje como um estresse pós traumático, viver o que vivemos com a pandemia não é algo simples emocionalmente. Viver um momento histórico definitivamente não é algo glorioso. Não se ele for uma pandemia.
Dito isso, agora que podemos nos rever e ocupar a cidade novamente, bater perna por aí é das minhas atividades preferidas e depois de anos ruminando capim em casa, eu quero mais é andar até perder o rumo. Ainda estamos vivendo a pandemia, mas num momento menos histórico talvez. Volto a sentir o gostinho agridoce dos roles do Kleber, intermináveis e sem destino prévio. Me chame pra quase qualquer coisa e lá estarei. Adicione a essa equação o fato de morar numa nova cidade, que me convoca a conhecer lugares e pessoas, sensações e movimentos. Nessa nova toada pós anos de mal humor, ativo outro modo de estar no mundo. Bora viver, digo pra mim mesma. Com a cara e a coragem, vou. E assim fui parar na foto das escritoras feita no estádio do Pacaembú, na feira do livro organizado pela revista 451, no último final de semana. A chamada pública foi realizada pela escritora Giovana Madalosso, como atualização de uma outra foto histórica feita no Harlem nos anos 1958 com músicos de jazz. Com o intuito dar visibilidade (seria essa outra palavra cansada?) a escrita feita por pessoas que se identificam como mulher e que tem qualquer tipo de publicação, seja uma zine, seja um texto numa coletânea ou mesmo uma coleção de livros autorais. Pois bem, lá fui eu, no domingo de dia dos namorados do pai do Doria, participar da foto.
Inicialmente marcada para a escadaria Patrícia Galvão, ali em frente a referida acumulou-se uma horda de autoras, um burburinho de encontros e reconhecimentos, um frisson. Eu, que geralmente não me considero tímida, congelei e não conseguia falar com ninguém. Passados uns vinte minutos, tomei coragem e fui ao encontro de Aline Valek. Fiz meu cadastro através dum qr code disponibilizado na tenda ao lado da escadaria e então aguardei. Demorou mais uma meia hora pra organização de uma fila e nesse intervalo consegui autografar meu livro com Letícia Letrux e conhecer Gaía Passareli, embora eu continuasse irremediavelmente tímida. Eis que ouvimos um anúncio, parecia que a foto finalmente ia sair, mas era um redirecionamento para outra fila, que dessa vez nos levaria para dentro do estádio do Pacaembú, porque apareceu muito mais gente do que o esperado. Algo pra pensar…
Durante a hora que seguiu, ainda na fila, tive muitos pensamentos enquanto esperava timidamente ao lado de escritoras famosas e anônimas. Meus joelhos doíam e eu pensava mas autoras idosas que ali estavam. Achava o espaço apertado e pensava na locomoção das autoras com deficiência. Algumas autoras foram com seus filhos, que já impacientes estavam – pudera, eu também, tive fome e sede, batia o meio dia e não parecia que íamos entrar. Também percebi um uníssono de mulheres brancas e cis gênero, como na maior parte dos eventos feministas que já participei. Todos esses pensamentos se misturavam, claro, com a euforia de estar presente com um monte de mulher maneira e interessante. Mas tinha um gosto amargo no final do suspiro de quem espera por horas, porque o joelho tava realmente pedindo pra descansar.
Quando finamente entramos, foi empolgante por diversos motivos… entrar nesse local misterioso que está envolvido em polêmicas sobre sua reforma. E que receberia naquela noite um show de sertanejo (mais uma camada de polêmica). Sentamos estrategicamente ao meio da posição da foto. E não parava de entrar gente na foto. Espreme aqui, sobe mais um degrau da arquibancada. E mais um, e mais um, e mais um. O lugar escolhido já tinha sido perdido. Algumas mulheres perdiam o sorriso, os joelhos doendo do esforço e da espera, o cansaço, a ansiedade. Arrumou todo mundo. Hora da foto. Poucos fotógrafos. Nenhum tripé. Penso, no meio do barulho, “vou virar um pixel”. Vejo mais sorrisos cansados…
Na hora H, alguns avisos no megafone. Não pode tirar foto do estádio. Não pode filmar. Não pode postar. Regras da administradora que gentilmente (?) cedeu o espaço pra foto. Pra ocupar tem regra também, mas parecia que a regra tinha que ser deles, e não de nós que ocupamos. Não pode gritar fora Bolsonaro ou lulala, não pode bandeira, não pode gesto político, a administradora, vocês entendem. Nosso ato já é revolucionário, disseram. Algo em mim fica mais amargo, tipo refluxo depois de comer um rodízio de qualquer coisa.
Nunca achei difícil juntar um monte de mulher branca com propósito pessoal. Porque no fim das contas era um pouco isso, “participei de um famigerado momento histórico”. Veja, eu acredito que seja de extrema importância a visibilidade da literatura escrita por mulheres. Mas é numa foto pixelada, sem rosto, sem bandeiras, sem gritos, que faremos essa história? Quantas estavam nas mesas da feira de livro que acontecia nesse lugar? Quantas participaram da organização? Quantas foram enaltecidas e tiveram suas obras nos holofotes durante pelo menos esses quatro dias? Quantas conseguem ser publicadas? Quantas… acho que deu pra pegar o fio né? E eu não quero desenrolar ele sozinho…
Me despedi das colegas escritoras e fui catar o conje que me aguardava pacientemente no gramado da praça charles miller, com muita fome. Fomos curtir nosso dia dos namorados e deixei as redes sociais de lado por algumas horas. A noite, lendo grupos de zap, Twitter e Instagram entrei em contato com o gosto amargo sendo trazido por outras vozes, senti um quentinho no coração. É preciso mais, bem mais. Ainda que tenha sido massa tirar essa foto, esse não é exatamente o jeito que eu quero viver num momento histórico. A foto saiu na capa do jornal Folha de São Paulo na última segunda feira, comprei e guardei meu exemplar. Estamos lá, pixeladas. É superficialmente empolgante, mas eu desejo ver mais do que um amontoado de pixels chamado mulheres escritoras. Não somos um amontoado. Quero ver essas histórias onde elas merecem estar: nas mãos das pessoas.
E se você que me lê precisa de uma chamada pra publicar o que escreve, a hora é essa. Se quiser ajuda pra começar, estou aqui. Simbora!
Hoje não tem linkeria por problemas técnicos. Na próxima edição, retomo as indicações.
um abraço e até logo,
paulamaria.