Todo mundo hoje em dia tem algo imperdível para te ensinar, certo? Seja pelos conselhos que você não pediu, seja pelas propagandas que as redes sociais apresentam ou até mesmo aquela pessoa que admiramos e que lançou um curso novo, parece que o mundo tá cheio de fórmulas infalíveis e basta investir um pouquinho - ou muito - que você consegue ser exatamente aquilo que deseja. Hmmmm, será?
A quarentena trouxe à tona novos modismos, principalmente no que tange ao famigerado autoconhecimento. Para você conseguir descobrir e realizar sua melhor versão de si mesma é só seguir os passos apresentados no carrossel daquela postagem, ou fazer esse curso de escrita, ou alimentar o artista que existe em você com uma nova abordagem que recupera sua linhagem ancestral. Nesse balaio de gato, levar gato por lebre é batata! Mas se acalme: eu sei que coisas muito interessantes estão misturadas com porcarias enlatadas, mas quem tem tempo de separar o joio do trigo? A gente quer é conforto, alienação e memes. Ah, e lanches. Depois de escrever sobre #processos na primeira news, me deu vontade de escrever sobre #método.
Em sua etimologia, método vem do grego méthodos: pesquisa, busca, estudo de um tema. Palavra composta por metá, que significa atrás/através seguida de hodós, que é caminho. Aqui, volto um pouco no tempo e lembro de que na faculdade aprendi, dentre muitas maneiras de pesquisar, o conceito metodológico da Cartografia, que na inversão da palavra para ‘hodos meta’, aposta-se na experimentação do pensamento, mudando a atitude do pesquisador, que sai do lugar de especialista-analista situacional para co-criador do campo pesquisado. Na época, confesso que me encantei pela poesia do negócio, mas pouco entendia como eu ia conseguir fazer aquilo na “prática”.
Hoje, muitos anos depois de conhecer a cartografia, consigo estar mais à vontade com sua proposta. É bonito pensar que um trabalho de pesquisa pode ser lido como a construção de um mapa, né? Traçar linhas, delimitar territórios, estudar os terrenos, construir estradas. A cartografia também me trouxe luz para o próprio processo de viver: autoconhecimento também é mapear a própria vida e, spoiler: não há regras de antemão. Viver é escrever sem borracha, diria uma observação final em uma das mil cartas trocadas com Carol lá em 2002.
Uma vez que abrimos uma estrada - ou um atalho no meio da trilha - a gente não sabe onde pode chegar.
Sendo assim, volto às ofertas imperdíveis de produtos que te levariam ao mais profundo zeitgeist do autoconhecimento que apareceram nessa loucura chamada pandemia. Não quero gongar - ainda se fala gongar? - as ideias alheias sobre o tema, sinto que são propostas muito válidas e que realmente ajudam muitas pessoas a se compreenderem nos seus #processos. Ouvir, ler e assistir alguém que nos guia para caminhos possíveis pode ser interessante quando construir o próprio mapa sozinha está difícil demais. O que me intriga é a promessa, sabe? Como prometer para alguém que aquilo que funcionou para mim vai com certeza funcionar para você?
Se quero subverter a descoberta de novos caminhos com a prerrogativa do hodos-meta, preciso colar um post-it no espelho do banheiro para todo dia acordar e me convencer mais uma vez de que não há garantias. Como diz a célebre frase do Guimarães Rosa, viver é perigoso. Talvez seja por isso que tem parecido mais fácil imitar o caminho dos outros, porque eles estão mostrando - ou fakeando - que deu certo, deu sucesso, é top! Não vou dizer que já não fui seduzida diversas vezes por esses produtos e discursos, afinal de contas, além de perigoso, viver é um saco às vezes, difícil demais. Tem dias que os memes de cachorro andando em cima de um pato não resolvem as desgraças mentais, aí o novo curso de escrita da fulanadetal parece sim, a saída irremediável para todas as minhas questões. Porém, a fulanadetal vai continuar a escrever o mapa dela, não o meu. #fuén
Sigo rabiscando mapas, mudando de direção quando desejo ou quando acontece sem nem mesmo perceber. Cartografar uma vida exige coragem, disposição e afeto. Se eu fosse dar um conselho (que você não pediu), eu diria para manter essas três coisas sempre nos bolsos durante essa longa viagem. Desmonte as idealizações em relação a elas, pegue muito pouco do que dizem que deveria ser e monte sua própria bússola-balança-dicionário. Citando Ian Hacking, que tirei de um texto meu do fundo do baú:
"Muitos experimentos criam fenômenos que não existiam anteriormente em um estado puro. E se isso é verdade para as coisas que fazemos, também o é no que diz respeito às nossas capacidades mentais. Novas formas de pensar também emergem com o tempo e por sua vez mudam os termos através dos quais o mundo aparece para nós".
Ah! Quase esqueci... Essa edição tem novidade! Sessão de links gostosos para complementar sua leitura. <3
andré abujamra declamando guimarães rosa: https://www.youtube.com/watch?v=eizlvwctuqw
os mapas de Piri Reis: https://publicdomainreview.org/collection/the-maps-of-piri-reis
música fofíssima do thiago pethit, mapa mundi: https://youtu.be/pXBIWw185oY
o mundo é grande e selvagem ou wild world regravada por Brandon Boyd: https://youtu.be/5F3twUT8uYo
Um abraço e nos vemos na próxima edição,
paulamaria.