Mudanças vem devagar, ainda que o visível seja aquilo que parece repentino. O giro 180º, que às vezes nos confunde e, para aumentar o grau de intensidade da mudança, dizemos 360º, que não nos tiraria do lugar, em tese. Em “A biblioteca no fim do túnel”,
faz um voo entre textos sobre literatura que produziu de 2017 a 2022. Nessa viagem de monomotor, o voo é baixinho, ficamos bem perto da paisagem brasileira da última década, logo, da realidade política e social que desenhava um novo rumo e que se mistura ao micro mundo do leitor Rodrigo, com dicas, críticas e notas pessoais através de sua biblioteca. Logo de começo, no texto “A vontade de repetir a primeira vez com certos livros”, Rodrigo cita Heráclito, aquele filósofo famoso da metáfora do rio: nunca é o mesmo rio que passa, nunca somos os mesmos a passar por ele. Seja um rio caudaloso de corrente forte ou um que seca pela negligência humana e sobram apenas poças: não seremos iguais, ainda que alguma essência permaneça. O rio e as pessoas estão sob constantes intempéries, pouco a pouco são transformadas, sem ter uma forma final definitiva.Mesmo entendendo que mudanças vem devagar, o espanto daquilo que muda nos toma de assalto. Encontro alguém que há muito não via e sua atual forma se atualiza na minha memória de maneira repentina, aquilo que olho no outro me deixa em alerta, em confusão: ué, mas fulano não era outra coisa? Como assim, mudou do nada? Não sempre foi daquele jeito? O espanto rouba a sabedoria do tempo, por instantes um sequestro da percepção, a suspensão do processo, o acesso à crueza das formas. As mudanças vêm devagar porque o tempo age de dentro para fora, do microscópico que se acumula até ser visto à olhos nus. O tempo da mudança é sempre o tempo de dentro. Demoramos nove meses pra formar um proto corpo e nascer, e depois passamos a vida inteira pra formar alguém que tenha nome próprio. Stanley Keleman, uma das minhas referências na psicologia formativa, chama o estado da mudança de middle ground. O entre. O casulo. O nem lá nem cá, sabe? O que antecede a curva do rio.
Transformar-se com lentidão é luxo em tempos avassaladores como o antropoceno. Seria leviano afirmar que você precisa desacelerar – até porque eu acredito que você já saiba disso. Precisamos, em uníssono, encontrar caminhos que elejam viver dum jeito que respeite o tempo orgânico e não o tempo algorítmico. Me pergunto, milhares de vezes por semana, se ainda é possível – enquanto rolo o dedo por quilômetros na tela do celular. Como respeitar a necessidade do entre formas, se o tempo todo estou sendo convocada a ser isso ou aquilo – que nunca é o que já sou? Lentidão é resistência na era em que tempo vale mais que ouro – mas confesso que tenho vendido meu próprio tempo bem baratinho. Resistir é um verbo que não pode ser construído individualmente e também por isso escrevo esse texto, na tentativa de dividir uma angústia que tem nome e forma: cansaço.
Num dos melhores filmes que assisti em 2023, Relatos Fantasmas, Kleber Mendonça Filho retrata a cidade do Recife através de suas andanças ao longo de quase cinquenta anos. Nas imagens, a mudança da paisagem urbana, da casa onde cresceu, da estética de sua obra e até mesmo de sua imagem corporal fazem um vai-e-vem não linear, que se corrói pelos cantos, que não faz um giro de 180 graus. Leio, um mês depois do filme, nos versos de Assionara Souza: “Um dia havia aqui um cinema/ Ilusão movente dos espaços/ Hoje é uma loja de calçados”. Os anúncios das grandes mudanças começam em volume baixo, como um ruído, um zumbido quase inaudível, mas persistente em ouvidos mais sensíveis. Aos poucos, o volume aumenta, ruindo estruturas pelas beiradas, descascando pinturas, infiltrando paredes, amolecendo a pele, enfraquecendo músculos, diminuindo a libido. É assim que tenho me sentido. Talvez por isso tenha escolhido a imagem do caracol para o novo livro. Há anos estou no entre e tem épocas que mergulho mais fundo e tudo fica mais orgânico, mais natural e lento – a tal resistência aparece, à minha revelia. Mudanças vem devagar. Pro bem e pro mal. Pouca coisa está sob nosso controle. O que faço é o que posso fazer: me alimentar do meu próprio rastro, viscoso, brilhante, único – porque é meu. No livro de Rodrigo, encontro outra pérola catada por este leitor atento no texto “Clarice, Brasil: a vida é um soco no estômago, morrer é um instante”:
“A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crúcis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta, é a glória própria de minha condição. A desistência é uma revelação.” (Clarice Lispector em A Paixão segundo GH)
Entendo a desistência de Clarice como lentificar, desendurecer, abrir mão da casca e entregar-se ao puro estado de mudança que precisa de tempo. Elencar a pausa como urgência. Nesse passo, deslizar como caracol é construir uma biblioteca, é escrever com a finalidade da tentativa, é fazer poesia no cenário em ruínas, é compartilhar fragilidade em um mundo de aparências plásticas que não envelhecem. Quando desisto, posso me espantar menos com as mudanças em mim e no outro, posso me aproximar de coisas que não compreendo bem e posso colocar minhas certezas em suspensão. Por último, voltando ao livro de Rodrigo, deixo um trecho do belo texto-entrevista com Ignácio de Loyola Brandão:
“(…) tem um Brasil que continua a viver e a pulsar; pessoas que procuram se refazer, construir uma vida. Será que não é uma maneira de resistir? Quem sabe outros milhares não possam encontrar um novo caminho: a leitura, a arte, o cinema, a pintura, o bordado… A gente complica muito a vida. A simplicidade pode salvar isso tudo aqui, se deixarem.”
Enquanto espero, enquanto desisto de me forçar a uma forma e resisto no entre, escrevo e bordo.
Hoje sem drops. Continuo vendendo a rifa pra Flip e também meu livro. Se tiver interesse, dê aquele salve.
um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Primeiro texto seu que leio. Gostei. Vou ficar.
Obrigado pela leitura atenta do livro e pelo diálogo em seu texto, Paula :)