2019, cinco anos atrás. Decisões que eu tomei nessa época ainda reverberam por aqui, de outras, já nem lembro. Em janeiro daquele ano resolvi ficar um mês sem beber, em fevereiro fiquei um mês sem Instagram, em março o jejum foi de chocolate… E assim segui por mais alguns meses de privações. Parei quando percebi que não estava cumprindo um desafio, mas me impondo uma série de punições. Não preciso dessas coisas para me sentir feliz, fico bem sem tomar cerveja ou comer chocolate, contudo, quando percebi que me impunha o jejum naquele momento de fragilidade (vivendo um luto), vi que não fazia sentido. Passar meses seguidos me punindo por escolhas de anos anteriores não iam trazer de volta nada do que havia perdido. O único jeito era continuar a viver, sem punições ou prêmios. Viver.
“Hoje em dia ninguém mais tem a coragem de inventar algo novo. Fala-se apenas sobre como as coisas já são e se continua lançando as mesmas ideias antigas. A realidade envelheceu e ficou senil; está sujeita às mesmas leis que qualquer organismo vivo – envelhece. Assim como as células do corpo, seus componentes mais elementares – os sentidos – sucumbem à apoptose. A apoptose é uma morte natural, provocada pelo cansaço e pelo esgotamento da matéria. Em grego essa palavra significa “a queda das pétalas”. As pétalas do mundo caíram.” (p. 60)
Todo janeiro depois de 2019 foi diferente. Em 2020, senti que finalmente estava de novo viva: em cada poro da pele curtida ao sol nas caminhadas solitárias na areia, vida. E vivona, eu estava também animada: é tudo aqui agora, estou a salvo e bem. Naquele janeiro, não me lembro de ter escrito metas no papel, mas fiz planos de longo prazo, sem datas, como o de me mudar para São Paulo. Também já contava com uma viagem para o show dos BSB, cumprindo uma das promessas pessoais de não perder mais shows importantes. Porém, era dois mil e vinte né, o ano em que tudo mudou em nossas vidas, e, independente do plano que eu ou você tivéssemos feito: acabou, suspende, deixa pra um outro dia – ou nunca mais. Não foi em janeiro, mas a sensação é de que o começo de 2020 se condensou com o final de 2019 e o ano iniciou pra valer quando o mundo caiu. Para 2021, a meta era acordar daquele pesadelo infinito, tanta raiva acumulada atrás de cada um dos meus 32 dentes que acredito que nunca mais posso me livrar do refluxo ou de ter cáries. Não sinto que houve uma ruptura entre anos, 2020 e 2021 parecem um grande pedaço duma coisa amorfa, feia, suja e podre. Quando essa treva terminou – ou pelo menos parte dela – voltei lá atrás, no rascunho de 2020 e vim. Enfiei meus livros, móveis velhos, conchas e roupas num caminhão-baú e rumei para São Paulo. Foda-se, era preciso tentar. Era preciso ensaiar sonhos de novo.
“A primavera é apenas um curto interlúdio, seguido por um poderoso exército de morte que já está cercando os muros das cidades. Vivemos cercados. Se examinássemos de perto cada fragmento de um instante, nos engasgaríamos aterrorizados. Nosso corpo passa por um incessante processo de desintegração, em breve adoeceremos e morreremos. Nossos entes queridos nos deixarão, a recordação deles se dissipará na agitação; não sobrará nada. Apenas algumas roupas e alguém numa foto, já irreconhecível. As lembranças mais preciosas se desvanecerão. Tudo tombará na escuridão e desaparecerá.” (p. 119)
Exatamente dois anos depois, escrevo essa newsletter. Ainda estou processando os flashes de memória do aniversário de morando-nessa-cidade. É janeiro de novo e não faz sol lá fora, o horizonte é cinza de chuvas tenebrosas e de poluição. São Paulo é barulhenta demais, cara demais, longe demais. Muitas pessoas me perguntam porquê raios vim morar aqui e outras ainda lamentam quando digo que moro na maior cidade do país. Eu entendo e já não me ofendo mais – não é pessoal. Tenho uma resposta simples que mora na ponta da língua: vim porque quis e podia. Por anos não pude, mesmo querendo muito. E eis que pude, então, vim. Para escrever as metas desse ano, estou com calma olhando para mim mesma como um álbum de fotografias desses últimos cinco anos. Passo as páginas lentamente e um sentimento persiste: é preciso agarrar o tempo que conseguir. Segurar forte, não perdê-lo por pouco ou quase nada, defendê-lo como um filhote indefeso. Ainda que na tentativa de agarrar, ele se desmanche no ar, a sensação da luta por algo que é meu me satisfaz. E essa é a minha meta de 2024.
Como autônoma, meus janeiros tem uma temporalidade esquisita. O planejamento dos atendimentos nunca depende de mim, porque mesmo que “todo mundo esteja ansioso pela volta das psicólogas de férias”, do outro lado tem as obrigações financeiras que pesam e fazem também o consultório esvaziar. A lentidão para engatar o ano já faz parte da rotina entre dezembro e março e, nesse grande intervalo, leio o máximo que posso. Lá atrás, em 2019, conseguia ler quase um livro por dia em janeiro porque precisava muito da ficção, muito mais do que antes. Percebi que não era só cinco anos atrás, hoje sei que minha sede pelas histórias só aumenta e que talvez não haja vida suficiente para mergulhar em todas as que preciso. Bah, é frustrante e também um conforto: o tempo é um limite – os psicanalistas estão aí para nos comprovar. E não me venha com papo de que Psicanálise não é ciência porque a vida, sem ficção, psicanálise, arte, bruxaria, fé, mandinga… Não é vida.
“(…) a vida é um acontecimento instantâneo, seguido pela morte, que um dia permitirá que a faísca se liberte da armadilha; não há outra saída. A vida é uma espécie de campo de manobras experimentais muito exigente. A partir desse momento, tudo o que você fizer contará, cada pensamento e cada ato. No entanto, eles não servirão para te castigar ou premiar depois, mas porque constituirão seu mundo. Assim funciona essa máquina.” (p. 201)
É época de Big Brother. Longe de mim mexer no vespeiro dos fãs, lidemos com um fato: acompanhar BBB consome muito tempo. Além da TV, tem os cortes no youtube e claro, os zil mini vídeos de instagram e tiktok, mais os perfis de fofoca e memes. Não tô aqui pra julgar ninguém, trago o programa como uma comparação concreta e atual ao meu plano pessoal de agarrar o tempo para mim. Aqui em casa não assistimos, dei uma chance na pandemia na edição do Gil do Vigor, e confesso que não é mesmo minha praia acompanhar realitys. Não vejo BBB, mas gasto muito tempo fazendo outras coisas que em 2024 não quero fazer mais. Como a sra. Dusheiko disse ali em cima, já que a vida é um campo de manobras experimentais sem saída, quero também me movimentar entre as manobras das quais não posso fugir. Começar o ano lendo uma história fictícia de uma tradutora, professora de inglês e defensora dos animais não pode ter sido apenas uma coincidência. Se eu pudesse conversar com essa nada simpática senhorinha, sei que ela pediria minha data de nascimento e apontaria nosso encontro no meu mapa astral.
Enfim, essa é minha lista de metas simplificadas para o ano:
Não assistir séries que nunca vi ou que já não acompanhe;
Não ouvir podcasts quando posso ouvir música;
Não passar tempo no youtube vendo coisas que absolutamente não me interessam;
Não zapear pelo celular quando posso só olhar pro teto ou ler um livro;
Escrever no diário, ainda que pule algum dia;
Escrever a newsletter, ainda que não seja semanalmente;
Exigir e ser firme quanto à remuneração do meu trabalho (mesmo que por escambo);
Continuar a praticar atividades físicas regularmente;
Não me disponibilizar quando não pediram minha ajuda;
Cuidar da casa e do meu corpo como prioridades;
Não me odiar, não me punir e não me desculpar por qualquer coisa.
O que você pretende fazer com seu tempo em 2024?
Drops:
As citações inseridas no texto são do livro Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk. A Editora Todavia enviou gentilmente exemplares após eu apresentar o Clube do Livro Quem Quer Ler. Vem comigo? Este livro será o primeiro;
Evento comigo e mais outra galera que escreve, em São Paulo, dia 20/01: Sarau DEVIR;
Texto importante do Rodrigo Ghedin sobre o Substack e o naz1smo;
Escrevi essa edição ao som dessa ótima playlist.
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um abraço,
paulamaria.
Achei muito bacana suas reflexões sobre os anos anteriores, sempre gosto de pensar meu ano anterior para fazer do ano seguinte melhor para mim, nem que seja 1%... bjos
Muito bonito ver o trajeto dos desejos, a realização. Metas ótimas, estamos próximas em algumas delas. :)