Vira e mexe - que expressão deliciosa, não? - tenho crises existenciais profundas e dá vontade de jogar tudo no lixo. Literalmente tudo, até eu mesma. Esse ‘vira e mexe’ acontece com mais frequência do que eu gostaria de lidar… Sigo tentando evitar essas crises contornando o caos com algum tipo de rotina e procurando manter a cabeça erguida em direção ao horizonte. Dizem por aí que baixar a cabeça faz cair a coroa… Será que me pensar monarca me salvaria do desespero sazonal? Enfim, the queen is dead e a monarquia segue lá, milionária etc e tal.
A crise hoje, enquanto escrevo essa crônica-confissão, é a de que muitas pessoas que atendo leem meus escritos. Claro que eu já sabia disso, consigo ver o e-mail de todo mundo que assina. O negócio é que recentemente fiquei pensando: ‘é isso, eu nunca deveria ter começado esse troço de escrever newsletter, onde que eu tava com a cabeça? É evidente que eu tenho que parar porque eu não sei fazer isso, deixa pra quem sabe, monte de gente competente por aí, bora apagar tudo e apagar a luz como se nada tivesse acontecido’. Sustentando o calhamaço do livros dos incômodos, escrevo esse texto. Ele é um livro no qual registro meus mais aleatórios sentimentos de inadequação e nesse exato momento, equilibro ele no topo da minha cabeça, o que ajuda mantê-la erguida, e, caso exista a tal coroa, evitando que a mesma caia.
E que lou-cu-ra se pensar rainha de qualquer coisa em pleno 2022, né? Outro dia escrevi sobre a Madonna, a monarca do pop entre 1980-2000. Ainda que a alcunha de rainha possa ser relativizada ao ponto de ser incômodo, parece interessante apropriarmos a monarquia e suas práticas em algo bom como a música, que ‘invade’ territórios sem pedir licença - leia com todas as aspas possíveis. Sendo assim, dá pra pensar que a música chegou até a mim - e na maior parte dos cantões do mundo, através de uma das tecnologias mais sensacionais já inventadas: o rádio, que no começo de setembro fez 100 anos de Brasil. Nesse mês também tivemos outro ‘aniversário’, esse muito menos interessante: a comemoração dos 200 anos de independência do país, o fim do Império e o começo dos anos de liberdade do Brasil (rindo em letras garrafais). Os 100 do rádio, o coração de d. Pedro (!!!), a morte da rainha, minha 12837398 crise. Sigamos.
Ainda sobre monarquia, como muitas millenials, cresci com histórias de princesa nos contos de fada. Confesso que não sinto (mesmo!) tanta influência disso no meu ideal romântico - tava meio na cara que príncipes não existiam e não me parecia uma boa ideia viver isolada num castelo à espera de algo emocionante chegar à cavalo. Filmes do final dos anos 1990 e início dos 2000 fizeram um estrago muito maior nesse quesito emocional, ainda sofro com a síndrome fantasmagórica da manic pixie girl. Imagens da família real da Inglaterra e outras europa afora apareciam com frequência nos jornais e revistas na minha infância e, também me lembro de quando tivemos o plebiscito em 1993 sobre qual forma de governo o povo brasileiro gostaria de escolher - acho que foi aí que aprendi, aos sete anos, o que era uma família real: pessoas que não trabalhavam mas que fingiam mandar em algo, vivendo às custas de muito sangue, suor e lágrimas alheios.
Dito tudo isso, não é de se espantar que uma princesa da ficção seja massacrada quando sua representação num filme de live-action não reproduz ipsis-literis a obra original. A Pequena Sereia estreia em breve com uma atriz negra no papel de Ariel e surpreendendo um total de zero pessoas, a internet racista veio com força no cancelamento do filme que ‘não respeita a veracidade da história’ - de uma SEREIA. Eu aqui, do alto da montanha da crise, equilibrando o calhamaço no cucuruto da cabeça penso que posso até escrever abobrinhas sem qualidade e ainda assim isso está longe de ser comparado com alguém que se sente na liberdade de propagar racismo internet afora. É com sinceridade e responsabilidade que escrevo essas palavras que espalho por aí… Então, talvez eu não precise mesmo jogar tudo fora. Talvez os pedaços que vivo tentando juntar com minha escrita sejam um pouco pertinentes. Ou, pelo menos, melhores do que acreditar que a sereia original era ruiva e branca. Sereia. Original. Veja bem.
Escrevi esse texto no silêncio que São Paulo permite, numa tarde cinzenta, úmida e fria. Escrevi sobre rádio e não ouvi uma música sequer. Não era o texto que eu queria escrever sobre o tema e nem mesmo desejava ter tocado no assunto da rainha (em situação de Olavo) ou do filme da pequena sereia. E foi sobre o que escrevi no final das contas. Virei e mexi coisas aqui dentro e assim construí mais um texto, em busca da constância (alô Gaía!) e da insistência em construir a escritora em mim. Outro dia assisti ao belíssimo filme ‘Os catadores e eu’, de Agnes Vardà, indicação de uma amiga. Fiquei na na esperança de que o filme pudesse compor um ensaio para um edital de revista famosa. Falhei no ensaio - parece simples, como tudo que é refinado - e ganhei uma referência riquíssima para meu trabalho (viver).
Os temas que trouxe aqui parecem pedaços que não combinam, assuntos que podem só estar fazendo sentido pra mim porque estou em crise. Sei que escrevo para estar em movimento. Escrevo porque gosto catar, reunir, organizar e entender como restos podem virar colagens. Diferentemente de uma rainha colonialista, que rouba, assassina e explora, mantenho a cabeça erguida olhando o horizonte e também sigo atenta ao chão que piso, com respeito às histórias que o compõem e com a licença poética de recolher aquilo que puder me fazer continuar. Desejo ser forte e longeva como as ondas de rádio, chegando onde conseguir fazer barulho, virando e mexendo um tiquinho a vida de quem me lê. E sonho em um dia poder nadar com a destreza de uma sereia - sem ter que negociar minha voz para poder andar no mundo dos homens.
Um abraço e nos vemos na próxima edição,
paulamaria
ô Paula, se o que você escreve são abobrinhas saiba que elas são deliciosas e têm gerado muita nutrição por aqui, viu?! gosto demais de como você une esses temas em colagens textuais (além das colagens visuais que cê cria também!), catando e juntando e mudando a orientação da página até fazer sentido pra você, e é isso, sabe?! tem que fazer sentido pra você antes de qualquer coisa. e pra mim, do lado de cá, acho a coisa mais linda ver os pedacinhos se juntando a partir do olhar que é só seu do mundo. vai escrevendo e se achando que vamos daqui te lendo <3
escrever até achar...
afe.
mal consigo escrever e-mails. quem dirá escrever newsletters... me sinto oca. amedrontada. da pressão de sobrevivência sobra nada pra escrever.
mas recebo com amor as tuas palavras, que sempre me lembrarão de bolos feitos com carinho e pessoas reunidas em torno dele e do café 💜