Nesta edição, trago um texto de ficção ou pelo menos uma tentativa de ficção em prosa. Estou experimentando o gênero durante uma oficina de escrita longa, com Marcelino Freire. São muitas inseguranças para trabalhar, busco a palavra enxuta e a prosa pede desdobramento. No exercício da criação, procuro as histórias que desejo contar no sistema de referências que armazenei na despensa mental. Neste sistema, tudo se mistura: livros lidos, filmes assistidos, conversas roubadas no ônibus, acontecimentos familiares, fanfics pessoais, tabloides de famosos, notícias políticas. Qualquer coisa é insumo para a escrita, mas transformar insumo em produto é trabalho intenso, demorado e desafiador. Contudo, é um desafio gostoso, diferente dos desafios do mundo lá fora. Não está fácil, na verdade, está cada vez mais – intensamente – difícil. Nos Drops, deixarei indicações sobre o tema da semana – infância, violência, garantias aos direitos humanos. Porque sim, direitos das mulheres são direitos humanos.
Helena, Andreia e Ester apostaram: em menos de um ano, estará grávida. O prêmio não foi divulgado e a aposta ficou escondida entre o trio, junto a outras coisas que nunca soube. Nos meus planos, três anos era o prazo, o tempo para me acostumar a morar na nova cidade, com a solidão da nova casa, com a praia feia e, sobretudo, com a ideia de perder. Também era o tempo de preparação. Estudiosa, não me furtaria quanto à maternidade: livros, cursos, vídeos. Tudo que era possível para me preparar, busquei. Não acredito em apostas, mal jogo na loteria.
Foi em julho, um ano e meio depois do casamento, que senti algo diferente. Senti medo e não contei para ninguém além de Giovana, que foi comigo ao laboratório. Dava para fazer exame de sangue sem pedido médico e o resultado sairia em menos de vinte e quatro horas. Lembro que olhei para os lados antes de entrar no prédio, afinal Vitória é um ovo. Lembro de suar ao ponto de começar a feder e poucas coisas me incomodam tanto quanto estar fedida em público. Giovana me abraçou forte após a coleta e nos despedimos ali mesmo na recepção. Segurei o papel com login e senha, torcendo para perdê-lo, quem sabe, num tropeço das calçadas mal feitas de Santa Lúcia. Mas não deu, o papel colou-se aos meus dedos. Então entrei no carro e antes de virar a chave, percebi que ainda segurava com força aquela metade de um chamex. Enfiei o papel amassado na bolsa e parto pra casa, sem ligar o rádio.
Não me lembro como peguei o resultado. Talvez em casa olhando o site sozinha. Talvez tenha pedido para Giovana ver pra mim, fotografando aquele papel amassado e enviando os dados pelo Whatsapp. A notícia veio como um diagnóstico letal que me cortou ao meio. A menstruação nunca tinha atrasado quarenta dias, meu ciclo é mais regular que relógio de ponteiro parado, que acerta duas vezes ao dia. Meu útero parecia me odiar. O trio de amigas perderia a aposta, mas o meu medo é que fosse talvez para sempre. Pensei em convocar um café, contar sobre meu desamparo. Pensei de novo e concluí que não valia informar, que elas não me entenderiam. Nunca perguntei para ninguém o que poderia ter acontecido.
Não ganhei e nem perdi uma criança: ela simplesmente nunca existiu. Onde moram os filhos que jamais teríamos? Não tenho respostas e parei de estudar sobre o assunto. Sei que engulo seco sempre que penso naquele julho esquisito que me fez feder em pleno inverno de ventanias. Eu não queria ser mãe, mas o gosto da impossibilidade era mais amargo do que eu imaginava. Choro de criança assombra, riso de bebê traz memórias fantasmas. Não precisa de muito para me levar para lá, naquele momento. A sensação de que o futuro não vale a pena me perturba vez em quando. Do trio já não resta nem amizade. O futuro, sei que chegou sem boas novidades. A solidão já existia antes, claro. Mas dessa vez foi diferente, o que ficou foi o terror.
Neste texto, imagino uma mulher adulta, impactada pelo acontecimento e pela fantasia em torno do tema da maternidade. Minha geração (a millenial) teve pouco ou nenhum acesso a uma educação sexual decente e não moralista. As referências que me acompanharam no período de formação foram revistas <femininas>, sendo as voltadas para adolescência insuficientes na instrução sobre sexualidade e as voltadas para adultas um completo desastre, contendo dicas quentes para agradar seu homem na cama ou relatos escusos de mulheres em situações violentas ou de abandono – maternidade solo, estupro, abortos clandestinos. Não é de hoje que estamos à deriva, abandonadas ao relento, à própria sorte. Fui uma menina, uma adolescente e agora sou uma mulher que não pode contar com a sociedade e nem com políticas públicas que garantam meu bem estar, minha segurança, minha integridade física e mental. Por sorte, encontrei parcerias no caminho, outras mulheres também inseguras, desprotegidas de informações, leis, serviços e garantia de direitos.
Imagino que o texto de hoje desagrade – talvez muitas pessoas se desinscrevam. Não tenho pretensão de ensinar nada sobre este assunto. A verdade é que estou exausta e não vislumbro horizonte de superação, o Conto da Aia de Margareth Atwood é nossa realidade, o presente é a distopia. Para quem fica por aqui, leia o projeto de lei 1904/2024 e se informe sobre os atos de repúdio na sua cidade. Se tem dúvidas, procure sua rede e converse sobre o assunto. Criança não é mãe. Direitos das meninas e mulheres são direitos humanos.
Drops:
Filme O acontecimento, baseado no livro homônimo de Annie Ernaux
Do que eu falo quando falo de estupro, importante relato e ensaio por Sohaila Abdulali (Ed. Vesúvio). Escrevi sobre ele aqui
Pesquisa da Think Olga sobre o primeiro assédio
Para quem gosta de dados, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023
Uma leitura que mudou minha vida: História Social da Criança e da Família, de Philippe Arriès
Jana Viscardi sobre o PL 1904/2024
O livro do mês do Clube Quem Quer Ler é Parque das irmãs magníficas da Camila Sosa Villada. O encontro é gratuito e acontecerá no dia 24/06, a partir das 19h. Inscrições neste link. A parceira dessa newsletter, a Editora Fósforo, junto com a Companhia das Letras organizaram esse evento massa que terá a presença de Camila dentre otras cositas más. Já comprei meu ingresso. Nos vemos lá?
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Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Me identifiquei muito com a sua história. Estamos vivendo um momento muito desolador, acabei escrevendo sobre isso tb esses dias, porque é só o que consigo pensar ultimamente... beijo!
Adoro acompanhar seus escritos e fico feliz de que nossas vozes partilhem dos mesmos incômodos e urgências. Ando um pouco sumida por conta da saúde, tentando economizar energia para continuar, mas sigo escrevendo e acreditando que apesar de distópico esse mundo, não podemos nos calar nunca, porque nossa voz amplifica os tantos de silêncios que nos foram impostos e que estavam cheios de palavras. Um beijo.