A mulher da casa abandonada. Inicialmente, um podcast de true crime que entrega a conta gotas uma história macabra acontecida vinte anos atrás em terras estrangeiras, protagonizada pela família Bonetti num remake de Casa Grande e Senzala. Fique tranquila, pode continuar a leitura que não darei spoilers, apesar da história ser factual e de provavelmente você já ter esbarrado com ela por aí, principalmente se usa Twitter. Tenho ouvido, semana a semana, os episódios da história narrada por Chico Felitti com coração apertado e revolta, como imagino que a maioria dos ouvintes. Porém, ontem me deparei com algo que já imaginava que poderia acontecer e não tinha visto nesse caso. O podcast estourou (já são 4 episódios) e o fã clube começou. É isso mesmo: fã clube de história desgraçada.
Eu entendo - de verdade - a curiosidade que o storytelling traz aos nossos ouvidos. Queremos saber as caras das personagens, queremos ver o cenário, queremos saber o que aconteceu com eles depois disso tudo. Outros podcasts sobre crimes inclusive tem sites de material de apoio para as histórias, como o ótimo Praia dos Ossos e o longuíssimo Projeto Humanos. Acontece que essa história da casa abandonada tem algo particular. Essa história se relaciona diretamente com a fundação do que chamamos de Brasil. Essa história é estruturante da subjetividade brasileira, porque essa história traz uma família branca que escraviza uma mulher negra por vinte anos. E é por isso que não pode, de maneira alguma, suportar um fandom.
Faço um pulo na música, que sempre me ajuda a ilustrar pensamentos. “Todo mundo devia nessa história se ligar”, começa o Rap da Felicidade de MC Bob Rum, que a plenos pulmões é cantada em festas de gente branca - como eu - que repete, sem muito pensar, com a cabeça cheia de álcool e sorriso no rosto: “Mas era só mais um Silva que a estrela não brilha / ele era funkeiro mas era pai de família”. Mais comum do que essa, a clássica “Eu só quero é ser feliz / andar tranquilamente na favela onde eu nasci” aparece até em festa de casamento, de gente que, provavelmente, nunca nem pôs os pés numa favela e sempre caminhou tranquilamente - ou com medo de ter o celular roubado. Pela favela. Entende a cilada? Entende a armadilha?
[vou usar a primeira pessoa (singular e plural) a partir daqui como e para as pessoas brancas, ok?]
Por que estou trazendo essas memórias junto da história da mulher da casa abandonada? Eu espero do fundo do coração que nesse momento do texto você tenha alguma pergunta mais elaborada do que esta, porque eu não quero ter que fazer um trabalho que é seu, que como pessoa brasileira, deveria fazer por obrigação. Esse trabalho diz respeito a descolonização dos afetos, uma frase que parece poética, bonita de falar em texto de instagram e nas rodinhas com amigos progressistas. E a verdade é que esse trabalho é árduo e pressupõe despir-se de papéis conhecidos, confortáveis e antigos. Pressupõe sair da Casa Grande e atear fogo nela, ao invés de visitar como ponto turístico e tirar fotos nos stories, como tem sido usado o “cenário” da casa abandonada. Descolonizar nos exige não alimentar a curiosidade da desgraça pela desgraça, do horror pelo horror. Descolonizar exige racializar a branquitude. Spoiler: não é um processo bonito ou instagramável.
Lembro de anos atrás, após o assassinato de George Floyd nos EUA, o enxame de postagens do quadradinho preto na timeline do instagram e o uso quase indiscriminado e vazio do #blacklivesmatter. Não foi tão vergonhoso quanto o #somostodosmacacos (sim, isso existiu e não foi trinta anos atrás), porém ao ver as postagens do quadradinho preto eu pensava no quanto aquilo me incomodava, o quanto aquilo me fazia pensar no comportamento massificado que a branquitude se engaja sem piscar por um segundo, no quanto se pensa “mas pelo menos é alguma coisa”, quando não se está, na verdade, se oferecendo nada. Penso a mesma coisa sobre a peregrinação à famigerada casa dos Bonetti e os outros diversos horrores que tem sido feitos em nome da fofoca completa: dados de parentes vazados, o nome da vítima exposto, fotos e mais fotos não autorizadas. Eu te pergunto: para que?
Sinto, com gosto amargo na boca, que é para apenas alimentar esse prazer esquisito e cruel da branquitude perante à desgraça alheia. Em parte, comoção e tristeza pela história de horror e desumanização, que rapidamente se perde porque por outro lado, a branquitude não se dobra sobre si mesma para pensar qual a parte do quinhão do pensamento escravagista ainda nos acomete. Em uma pesquisa rápida no google, ao escrever “senhora escravizada” e dar o enter, encontrei 3 notícias em 2022 sobre mulheres resgatadas em situação de escravidão no Brasil. Não nos EUA, levadas para longe dos nossos olhos. Aqui do ladinho, no apartamento ou casa ao lado. No Rio de Janeiro, em São Paulo ou em Salvador, as histórias se repetem porque essa é a fundação do Brasil. E a gente precisa escrever outra história.
Para denunciar violação de direitos humanos, o disque 100 funciona em todo território nacional. Clique aqui e saiba mais quais são as denúncias abarcadas por este canal.
Para trabalhar a decolonialidade sem demagogia besta e rasa, se coloque pra jogo com a Janaína e seu trabalho espetacular.
A crítica que apresentei não está voltada ao podcast, mas ao fã clube. Para sacar mais, tem muita gente falando por aí.
Pensei em comparar o "turismo" da casa abandonada com o turismo "dark", mas o contexto brasileiro é outro. Porém, vale conferir.
Meu episódio preferido na última temporada do podcast Mano a Mano é com a Sueli Carneiro. Que aula! Inclusive sugiro ouvir o podcast inteirinho.
Indico seguir a Lia Schucman que tem um trabalho famoso e sério sobre branquitude, mas acima de tudo de indico pesquisar referências não brancas em todas as áreas do pensamento e cultura. Quem tem me remexido as entranhas regularmente é Carla Akotirene. Reveja sua timeline. Urgentemente.
Por último, deixo um convite: a revista a.galinha está com chamada aberta para poesia e artes visuais. O prazo de envio é final de julho e os detalhes você pode ver aqui.
Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria