Entre o final de dezembro e começo de janeiro, é comum que eu faça recesso dos atendimentos em psicoterapia. A prática é recorrente na área, pois nessa época a tendência é o absenteísmo das pessoas atendidas - ou seja, um jeito bonito de dizer que tomamos muitos bolos. Tenho anos nessa estrada e aprendi que na balança da vida autônoma, deixar de ganhar nessas semanas é também ganhar um pouco de descanso. Infelizmente, nós que estamos fora da CLT, precisamos fazer escolhas difíceis como essa. Saudades, descanso remunerado.
De férias do consultório, tenho mais espaço para lidar com minha vida. Listas de coisas por fazer e, nos intervalos, descansar. Não deveria ser assim, mas é o que dá. Nessas quase três semanas de pausa, o relaxamento passou em raros momentos. A leitura que me acompanha ainda é a mesma dos últimos textos da newsletter e tem sido meu alento no meio do pequeno caos de pensamentos. Consegui ir à praia menos de uma dezena de vezes, o tempo chuvoso voltou e hoje, meu último dia no litoral, não terei banho de mar. Encontrei com quase todas as pessoas que gostaria, mas o tom de compromisso às vezes me tirou do momento presente - me peguei em ocasiões, preocupada e pensando no horário da próxima obrigação.
Apesar do incômodo e do tom de desolamento com o descanso programado, ter encontrado as pessoas que amo, com a cidade que faz tão parte da minha história e ter tido, ainda que parcos, momentos de encontro comigo mesma à beira mar, valeu a pena. Sinto que ao final dessas semanas, tenho novamente um contorno, uma forma, um design. Desorganizei e montei meus pedaços, mais uma vez.
(…) a camada de desalento, aos poucos, é perfurada pelas frases de Epicuro; frases como esta: “Todas as manhãs a amizade dá a volta na Terra a assim de despertar as pessoas*, para que eles possam felicitar uns aos outros”. E quem sabe era de Epicuro que eu precisava nesse exato momento; Epicuro que para evitar se lhe atribuíssem esta ou aquela herança filosófica, ostentava preventivamente desprezo por quase todos os filósofos. (p. 159, Lições de felicidade, Ilaria Gaspari)
Em seguida, apresento a vocês um texto antigo que achei na pasta do drive, buscando inspiração pra news de hoje. Acredito que seja de 2016, sete anos atrás, alguém acredita? Ao revisitá-lo, é notável como avancei nas questões que me faço, percebo ainda o desenvolvimento da minha escrita e também me reconheço em certas dificuldades. No geral, me sinto orgulhosa em identificar que não ter desistido de escrever durante esses anos transformou minha comunicação, hoje mais assertiva, corpulenta e sólida, e ainda íntima e pessoal. Gosto de escrever sobre minhas experiências e elocubrações, talvez essa seja a minha linha editorial
! Será que encontrei uma definição? Será que preciso?O recesso chega ao final e traz de volta a responsabilidade com o trabalho e com ela, a necessidade de definir projetos para o ano. Tenho uma barreira quase física para definir esses limites, quero viver mil coisas e esquadrinhar 365 dias em pequenas porções de objetivos e metas me causa uma sensação ruim, triste, ansiosa. Sei que funciona para muita gente, até já funcionou para mim, porém, hoje não faz mais sentido. Agora preciso de outra coisa. E, em meio ao pequeno caos de pensamentos dos últimos dias, defini meu objetivo como escritora em 2023: ler, escrever, publicar. Assim: genérico, conciso, direto.
Em maio completa um ano da publicação do meu livro de poesias, o Primeiros Pedaços. Mesmo que muita gente me pergunte ‘quando sai o próximo?’, sinto que falta trabalhar mais no primeiro, que posso levá-lo a muitos lugares, que preciso levá-lo para circular. Tenho planos de enviá-lo para bibliotecas municipais em São Paulo; ser lida em clubes de leitura (manda convites?); realizar oficinas a partir dos textos dele; produzir outras mídias com minhas poesias, como fez lindamente a Rafaela Amiz. Logo mais, em fevereiro, a newsletter completa dois anos! Escrever com regularidade aqui trouxe um leque de experiências inimaginável. Preciso comemorar e vou pensar em algo bonito para nós brindarmos esse tempo de comunhão.
Aí embaixo, o texto de 2016, sem reedições ou correções. Mais um passo de aproximação e confiança na relação com vocês que me leem:
“São raros os momentos nos quais um “não” consegue sair suave. Ao negar elogios, facilmente ele escorrega de meus lábios. “Você é tão bonita”. “Ah, que isso, tô maquiada, deve ser isso”. Quando me nego, me escondo atrás de algo que não preciso ser. E quando preciso, o tal do “não afirmativo”, corro dele com a maior capacidade de meus pulmões e pernas. Suave é um patamar difícil de ser alcançado, como, até mesmo, algumas receitas culinárias exigem…
O gosto de negar os limites — porque é mais assustador dizer não para o outro do que aguentar mais um tiquinho — vem de velhos tempos e velhas camadas. Uma alma velha não congela, diria um amigo meu. A verdade é que, hoje, pra mim, ela já vem congelada… Não conseguir dizer um não é se paralisar, se congelar no tempo e no espaço. Fingir que pode sim deixar pra lá algo que machuca, algo que não quer. Engolir aquele pedaço de cartilagem no almoço na casa da sogra, porque cuspir no prato é feio. Entende a sensação?
Marcar alguns “statements” sobre si mesmo é tarefa que vem com a maturidade de um sujeito-corpo. Por maturidade, não digo os que sabem mais ou dos que sabem menos. Nem mesmo estou falando dos mais velhos, dos adultos ou do mestre yoda. Sim, maturidade se ganha com tempo e experiência, mas não é por si garantida pela contagem dos anos… Há um exercício de aprender sobre si mesmo e agir sobre si que é necessário, importante e primordial para esta maturidade. Você não vai ganhá-la de presente aos 30 anos. (Note to self, inclusive).
Fico de pé. Fecho os olhos. Penso no meu corpo em pé, em todas as forças que agem sobre ele. Na gravidade, na culpa, na ansiedade, nos desejos e sonhos… Penso onde cada força dessa está agindo sobre mim: como meus joelhos se abrem, como meus pés se fincam com medo de perder o chão, como minhas coxas tremem e são flácidas, como meus braços jogam toda tensão para os ombros, como minha cabeça fervilha… Qual “statement” este corpo está me comunicando? O que ele quer? Como eu preciso agir sobre ele, para não me perder de mim?
O outro não cessa em me convocar. O telefone toca trezentas vezes, só esta manhã. Se nenhuma delas é para mim, por que atender? Não atendo, ignoro. Suportar o trim trim trim trim que ecoa em minha cabeça. Esqueço, ligo o som, qualquer coisa outra que ecoe. Um não possível por hoje.
Minha borda se estica mas pode estourar. Pode pocar, para capixabar. Os joelhos se abrem porque me afrouxo. E perco minhas coxas facilmente neste movimento. Perco a tonicidade do maior osso do meu corpo. O fêmur se dobra, esponja, espuma. Recupero — ou trabalho para recuperar — quando corro. Impulsiono essas coxas contra o chão. Elas tremem, mas respondem, com vigor. Incham, enchem-se de vitalidade, de sangue, de calor. Meu contorno se refaz. Outro não, desta vez, para mim mesma.
É preciso inventar um espaço para repetir o não. Construir um lugar que ele seja possível. Se utilizar do não, afirmativamente. Limite. Parede. Borda. Intimidade. Como é difícil! Intimidade consigo mesmo. Não deixo o outro me invadir, isso é violento, isso me machuca, isso me faz mal. Conto com o outro para me limitar, mas a relação é outra, não tem ditadura, não tem que obedecer, não tem que mastigar se não quiser mais engolir.
É preciso aprender a caber melhor nas próprias roupas.”
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um abraço,
paulamaria.
Adorei e me identifiquei um tanto ♥️ Foi mesmo a única semana do ano que minha terapeuta tirou folga de mim. Nessa semana fiquei sem escrever e senti um vazio muito esquisito. Que coragem linda a sua de seguir escrevendo. Beijos e bom ano!
linha editorial Mercúrio em Peixes, genial. com certeza é a minha tb (tenho mercúrio E sol em peixes). um prazer te ler!