Escrever é um exercício de construir uma forma temporária, pois todo mundo que escreve sabe que na palavra não cabe o sentido desejado, o alívio e o martírio, o prazer e o desespero, o pêndulo em que apoiamos nossas mãos – além do teclado. Catar as letras que formam palavras que formam frases que formam parágrafos que viram páginas que viram textos que viram livros que viram qualquer coisa outra imprevisível para quem irá nos ler. Digo que a forma é temporária porque o escrever é verbo infinitivo, mesmo quando o texto está entregue, porque ‘pronto’ pode ser definitivo demais. (outro texto meu sobre escrita, aqui)
Nessa edição, revisito um texto do ano passado, no qual me propus a fazer um dossiê de indicações de livros sobre escrita. Neste intervalo, li quatro obras sobre o tema e me senti instigada a escrever novamente sobre isso e lancei um questionário com provocações da temática para colegas escribas. Espero que gostem da colagem final.
Encarar a escrita como ofício – e não como um trabalho ou hobby – mudou o modo como escrevo. Não apenas minha perspectiva como escritora, mas o <<como>> escrever está imbricado no cotidiano e se relaciona com praticamente todos os meus afazeres. Em 2024, sou autora de dois livros de poesia, colaborei em diversas antologias e coletâneas de prosa e poesia, além de escrever esta newsletter há três anos semanalmente e com poucos hiatos. Escrever é um exercício de consistência e constância, é treinar os músculos do pensamento e das mãos, é aprender a dar suporte para as costas na cadeira e para os olhos que fitam o mundo em busca de histórias. O ofício da pessoa escriba não se encerra no texto publicado, pois tal qual manter uma casa, ao término de uma tarefa, outra se apresenta logo ali, na esquina do tempo.
“Eu me considero bastante paciente para este tipo de ofício, mas às vezes fico exausto. Entretanto, ao produzir dia após dia, com cuidado e paciência, como um pedreiro que empilha tijolos um por um, chega um momento em que penso “Sim, sou mesmo um escritor!”. E consigo aceitar essa sensação como uma coisa boa, um motivo para comemorar.” (Haruki Murakami, Romancista como vocação)
Ler sobre escrever é um costume relativamente novo nessa caminhada de escrita enquanto ofício. Decidi que era importante saber <<como>> outras pessoas que escrevem se sentiam sobre o assunto, <<como>> organizam suas rotinas, quais são suas referências, quais caminhos trilharam para chegar até aqui. Natalie Goldberg em Escrever com a alma diz que “se lermos bons livros, bons livros sairão de nós quando escrevemos. Talvez não seja assim tão fácil; porém, quem quer aprender alguma coisa deve ir até a fonte”. Então, procurei algumas fontes através de indicações e de pesquisa própria e neste caminho, desbravei incômodos, sorrisos e ótimos cutucões.
Nesta investigação, entendi o porquê Elena Ferrante conquista tantas pessoas ao redor do mundo. O mérito não é apenas do enredo instigante sobre a amizade de duas mulheres ao longo de uma vida, como lemos na tetralogia Amiga Genial. Elena é uma profunda estudiosa da literatura, uma dedicada e esforçada escritora e leitora, que não fez sua grande obra de um dia para o outro. Em As margens do ditado, ela nos conta sobre sua estrada nas Letras e na escrita da ficção, que a fez ser conhecida por todos os cantos. A autora anônima tem um longo percurso e ressalta a importância do tempo ao trabalhar sua escrita: "Nenhuma língua e nenhuma escrita se fazem sozinhas, ou seja, o escriba deve estudar e adquirir tal destreza que a palavra, ao se tornar escrita, seja “como se” corresse de dentro para fora, do coração para a página, autonomamente." Gosto da humildade que Elena traz quando nos salva da armadilha de procurar fórmulas mágicas para o sucesso de uma obra:
"[…] tendo a imaginar que a pessoa comum e a fora do comum partem do mesmo terreno: a escrita literária com suas catedrais, suas paróquias no campo, seus tabernáculos nos becos escuros; e, segundo, que o acaso — a mão que afunda no balde e extrai palavras — tem o mesmo papel ao pôr em movimento tanto obras menores quanto grandes obras. As frases verdadeiras, boas ou excepcionais sempre buscam seu caminho entre frases feitas. E as frases feitas foram em algum momento frases verdadeiras que abriram caminho dentro de frases feitas. Nessa corrente de obras menores e grandes obras, em cada elo grande ou pequeno, há trabalho árduo e iluminações casuais, esforço e sorte."
Para mim e para muitas escribas, é o desejo que nos move em direção ao ofício. Provoquei as colegas da seguinte maneira: Complete: Quando escrevo, eu quero […]. Confesso que fui provocada de volta, porque suas respostas mexeram com meus próprios quereres da escrita. Me disseram que, quando escrevem, querem: entender o mundo dentro e fora de mim; tirar a fantasia do inconsciente e jogar no mundo; ... Contar uma boa estória; renascer; a cada texto, eu existo de novo de outro jeito; tocar outra pessoa com minhas palavras a ponto de ela sentir que são suas e compartilharmos juntas desse sentimento; criar uma ponte em que possamos nos encontrar no meio e conversar; causar emoções ou reflexões; organizar os pensamentos em uma narrativa que eu consiga entender. Tentando responder a minha provocação, digo que, quando escrevo, eu quero conter minhas divagações no espaço-tempo, para depois, poder diferir de mim mesma. Natalie Goldberg diz que “é preciso continuar a se abrir e confiar na sua voz e no processo em si”. Repetidamente ao longo de Escrevendo com a alma, ela nos diz: “mantenha a mão em movimento”. Ou seja, escreva, escreva sempre.
Rosa Montero, autora de A ridícula ideia de nunca mais te ver, está novamente no hype com o livro Os perigos de estar lúcida, que ainda não li. Ano passado desbravei o aclamado A louca da casa, fortemente indicado em cursos de escrita – mas, confesso que não gostei. O tom preconceituoso em diversos capítulos me incomodou – o modo como ela se refere às pessoas com nanismo e pessoas com sofrimentos mentais é capacitista e problemático. Contudo, a leitura se fez valer quando ela destrincha o que aprendeu sobre escrever lendo outras autoras e autores:
“Há muitos anos venho fazendo anotações em diversos caderninhos com a ideia de escrever um ensaio sobre o ofício de escrever. O que é uma espécie de mania obsessiva dos romancistas profissionais: quando não morrem prematuramente, todos eles padecem, mais cedo ou mais tarde, da imperiosa urgência de escrever sobre a escrita”.
Se quem escreve é de certo modo obcecado pelo ato da escrita, é capaz de ter para si uma Regra de Ouro. Perguntei para alguns colegas qual seria essa regra e assim me devolveram:
- : Se você não tem tempo para escrever, nenhum outro conselho poderá ajudar. A minha regra de ouro é escrever todos os dias por pelo menos uma hora.
Taynara Gregorio: Reler depois de alguns dias.
Jackson Jesus: Escrever sempre!
- : Editar e editar! De preferência depois do texto descansar um tanto. Uns dois dias ao menos. Se for livro; mais um pouco.
- : Gostaria de ter uma. Acho que escrever, deixar de lado, voltar depois com olhos frescos, mexer no que for necessário, mas nem sempre faço isso – ou faço tantas vezes que os olhos se acostumam e deixam de enxergar qualquer coisa boa. Talvez a maior regra de ouro seja respeitar meus processos, por mais caóticos e inconstantes que sejam.
- : Só se edita texto escrito. Coloque a primeira versão no arquivo/papel e trabalhe a partir dela. Entender que se um texto é um vitral, a primeira versão é a areia que ainda será transformada em vidro.
- : Não se preocupar com muitas perspectivas e leituras distintas. Se você conseguir propor uma pequena epifania nova, um pequeno desvio ou um ângulo de vista novo sobre um assunto, já é ótimo.
Como Regra de Ouro pessoal, eu diria: escrever sempre e escrever na mesma medida em que cuida de si. Quando fiz o mestrado em Psicologia Institucional, há dez anos atrás, me sentia muito solitária, tanto na pesquisa quanto na escrita da dissertação. Sou uma pessoa com muitas ideias e as conexões entre os assuntos são muito rápidas no meu pensamento, ou seja, eu sofri bastante para produzir um texto que fizesse sentido, que fosse científico e que deixasse minha banca satisfeita – o que não aconteceu no final, história pra outro dia. Perceber essa confusão mental que produziu sofrimento mental e físico me colocou em alerta: era preciso cuidar de mim. Durante dois anos, escrevia diariamente e também corria diariamente, por pelo menos vinte minutos. Concomitante à corrida, fazia aulas de yoga duas vezes por semana. A corrida não era nada profissional, comprei um tênis confortável, saía com um tocador de mp3 e só. Correr, me alongar e aprender a respirar salvaram minha saúde e, consequentemente, minha escrita. Na época, li Do que eu falo quando falo de corrida, do romancista japonês Haruki Murakami, no qual descreve como a prática esportiva da corrida é essencial na disciplina de seu fazer como escritor. Em Romancista como vocação, seu livro sobre escrita, Murakami diz:
“Para manter essa determinação por muito tempo, torna-se essencial pensar na qualidade de vida. Primeiro, é importante viver de forma completa. E viver de forma completa é fortalecer o corpo, que é a armação que contém a alma, e fazê-lo avançar de forma contínua, passo a passo.”
Para finalizar essa longa conversa, deixo um trecho de Paixão Simples de Annie Ernaux, lido na tarde do último domingo e que apesar de não ser propriamente sobre a escrita, no final das contas, também é. Assim como a Gabi Albuquerque, sou fã de tudo o que essa mulher escreve:
“[…] todo o texto construído na minha cabeça, dia após dia, desde a primeira noite, com imagens, gestos, falas – o conjunto de signos que constituem o romance não escrito começa a se desfazer. Este texto aqui é apenas o resíduo, um mínimo vestígio, daquele outro texto, vivo. Assim como o outro, um dia este aqui não significará nada para mim. […] Mesmo sabendo que, ao contrário da vida, não devo esperar nada da escrita: ali só acontece o que nela colocamos. Continuar a escrever é também adiar a angústia de entregar o texto para os outros lerem.”
Drops em duas partes:
Indicações de leitura:
Antes do Baile Verde – Lygia Fagundes Telles.
As margens do ditado – Elena Ferrante
A imitação da rosa – Clarice Lispector
A louca da casa – Rosa Montero
A preparação do escritor – Raimundo Carrero
Como escrever bem: o clássico manual americano – William Zinzer
Escrevendo com a alma – Natalie Goldberg
Grande Magia – Elizabeth Gilbert.
Romancista como vocação – Haruki Murakami
Sobre a escrita – Stephen King
Cursos de escrita 2024/1:
Literatura e psicanálise: a escrita da intimidade, com Tatiana Pequeno
Escritas de ficção: ferramentas narrativas, com Lilian Sais
Viagem ao redor do texto, com Leda Cartum
Cursos de escrita, com
Laboratório de Escrita Recorrente, com
Clube do Livro Quem Quer Ler
É na próxima segunda feira, dia 29 às 19h, que teremos o primeiro encontro do Clube. Para mais informações, leia aqui!
Essa edição, mais longa do que o habitual, será mais constante em 2024. Pelo menos é o plano, me debruçar sobre algum tema e dissecá-lo do meu jeitinho.
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Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
para mim, cada hora funciona de um jeito. tem vezes que escrevo, escrevo, escrevo e depois edito. tem vezes que não releio e dou o texto como pronto. tem vezes que só escrevo depois de muito pensar.
Adorei <3
Ano passado fiz dois cursos da Escrevedeira e gostei muito
E recomendo super "Escrita em movimento: Sete princípios do fazer literário" da Noemi Jaffe